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Finalmente, Meu Livro: Matéria - Espada de Madeira

É, aqui estamos. Quem me acompanhou nessa trajetória sabe que foi uma aventura bem longa, com muitos obstáculos no caminho, estou ciente de que minha verdadeira jornada como escritor está apenas começando, mas me ofereço esses minutos de tranquilidade para curtir a realização de alcançar algo que venho buscando há tanto tempo.

Esses personagens surgiram lá em 2005, essa conquista serve para provar ao "eu" criança de 10 anos que é possível, sim, alcançar seus sonhos. E pensar que escrever fanfics de Pokémon me levaria a descobrir algo que amo, escrever me tornou uma pessoa melhor. Coloquei meu coração nessa história e mal posso esperar para compartilhá-la com vocês.

Há cerca de 7 anos, um leitor aqui do blog me mandou um e-mail dizendo o seguinte: "Cara, já pensou em publicar um livro infantil? Porque você tem muito talento! No dia em que você lançar, eu estarei lá para comprar".  A verdade é que não sei mais onde anda esse leitor, nem faço ideia se ele ainda frequenta esse blog ou se chegou a conferir a conclusão do Aventuras em Sinnoh em 2015, mas vocês não fazem ideia de como essas mensagens me motivaram a continuar seguindo em frente. Não se trata de uma só pessoa em especial, foram todos vocês, cada leitor desse blog amado que me ensinou a escrever, a lidar com críticas, me deu confiança e elevou minha criatividade ao nível máximo do que eu era capaz de oferecer.

Esse livro é para vocês. Obrigado por todo o carinho.
Matéria - Espada de Madeira, está disponível agora para compra. Que nossas aventuras nunca terminem!


Cortinas de Prata

Cortinas de Prata
Capítulo Especial - Sinnoh x Johto

Dez e vinte e quatro da manhã. Era uma terça-feira. O dia mais longo da minha vida.
O despertador tocou sete da manhã, minha mãe e eu estávamos hospedadas em Mahogany para visitar o vô Pryce que estava de cama. Já fazia alguns meses que comecei a visitá-lo todos os dias, ele estava meio fraco, mamãe dizia que era bom os netos estarem por perto o máximo de tempo possível.
A casa estava silenciosa, mas, como de costume, minha avó Katherine já estava na cozinha preparando o café da manhã. Cumprimentei-a com um beijo no rosto e olhei para o quebra-cabeça inacabado na mesa de sala — três mil peças, esse ia demorar um bocado.
— Vivian, sobe aqui, depressa! — minha mãe chamou com urgência.
Subi as escadas às pressas e me deparei com meu avô deitado em sua cama de bruços. Ele respirava com dificuldade, escorria baba de sua boca, seus olhos mal conseguiam se abrir; minha mãe sempre soube como lidar com situações adversas, eu não. Ela tomou o celular na mão e ligou para um tio médico, precisava descobrir o que estava acontecendo. Fiquei em choque, há pouco menos de duas semanas o vô Pryce parecia tão bem, estava rindo de meus comentários e resmungando com seu mau humor costumeiro... Do dia para a noite, foi como se ele tivesse envelhecido dez anos, seus cabelos sempre bem penteados estavam todos desgrenhados, a cama fedia a mijo, sua comida permanecia intocada na mesinha de canto.
Minha avó entrou no quarto trazendo um pratinho com pão e mortadela frito. Parecia que nem ela havia notado a súbita piora do meu avô.
Após receber as instruções do meu tio, mamãe começou a correr pela casa feita louca. Lembro dela ter me dito no dia seguinte: “Eu pedi pro universo me mandar alguém, qualquer pessoa, porque eu não conseguiria fazer aquilo sozinha”. Não demorou muito para que minha tia Neusa de Azalea chegasse — como um sinal divino —, e ela percebeu que a situação requeria urgência.
Deixei o quarto, porque eu não estava com cabeça para aquilo. Eu sabia que ia acontecer. Não quis negar, pois sabia das condições e da doença dele, mas encontrei dificuldades em compreender como a vida seria dali em diante. Subi e desci a escada mais vezes do que deveria, eu só não queria estar lá dentro, ficava repetindo a mim mesma: “Por favor, por favor, não deixa eu estar perto quando acontecer”. Observei cada quadro na estante, o meu favorito era um do vô bem novo carregando sua Swinub gorducha no colo, a primeira captura dele; cada objeto velho que trazia tantas histórias que eu ainda não conhecia; o tempo estava acabando, e por um breve instante fui assolada com a ideia de que não tinha aproveitado como deveria.
Minha mãe passou às pressas pelo corredor com os cobertores sujos. Enquanto ela estava ocupada, fui até o quarto e me sentei do lado do meu avô. Eu não sabia se ele estava me ouvindo, mas também não encontrei nenhuma palavra que oferecesse conforto, por isso só segurei sua mão, o que é curioso, não éramos de nos encostar muito. Fiquei acariciando-o de leve, como se tivesse a esperança de que minha presença o confortasse.
— Pai, pai. Você quer ir ao médico? — minha mãe falou com a voz solene. Era surpreendente o quão tranquila ela aparentava, dada a situação.
Meu vô mexeu a cabeça devagar — um sinal de que ele estava sim nos escutando —, mas fez que não com a cabeça. Decidimos deixá-lo tranquilo, enquanto minha mãe fazia conforme meu tio médico indicava pelo telefone.
Foi surpreendente como a notícia correu rápido. Em menos de duas horas, recebemos a visita de pelo menos seis parentes diferentes. Todos ajudavam com o que podiam, fiquei mais tranquila com a presença deles porque, sinceramente, eu não estava em condições de consolar a minha avó. Dona Katherine sempre foi uma mulher muito forte, mesmo que os dois nem fossem mais casados, quando ele começou a piorar, ela se mudou para Mahogany para cuidar do meu avô todo santo dia — preparava café, almoço e janta, aguentava os xingamentos (até porque gente velha é assim, gosta de xingar), limpava a casa, trocava os lençóis e no dia seguinte estava pronta para repetir a dose.
Eu estava sentada na varanda quando ouvi minha tia cochichar para minha mãe:
— Chegou a hora.
Respirei fundo e fechei os olhos. É, chegou a hora.
Quando subi para o quarto, me deparei com o corpo na cama. Vi minha avó sentada do ladinho dele, acariciando seu cabelo devagar. Eu digo que a mulher é forte, porque ela derramou uma lágrima, só uma. O homem da vida dela havia acabado de falecer, mas ela não fez estardalhaço, não perdeu o controle, nem demonstrou — era como se ela compreendesse que, frágeis como somos, um dia a morte chega para todos. Eu dei um abraço forte na minha mãe que também se permitiu chorar um pouquinho, mas havia muito a que se pensar: Onde seria o enterro? Como fazer o anúncio? O que fazer com o corpo? Qual o melhor velório? Quem ia assumir o ginásio?
É, morrer dá um trabalhão. O que mais doeu nessa primeira parte do dia foi ver o irmão mais novo do vô chegar. Ele é meio surdo, tadinho, e foi a última pessoa a conversar com ele em vida. Minha mãe disse que o vô estendeu o braço e sorriu, como se só o estivesse esperando chegar para enfim descansar. Eles eram em cinco irmãos, agora só sobrava um. Eu sou filha única, mas, cacete, deve doer ver todo mundo indo embora até só sobrar você.
— Vivian, querida, pode abrir a janela? — pediu minha avó.
Eu abri os vidros e, nossa. Que dia lindo pra morrer. Sério, a frase pode parecer sarcástica, mas estava um dia incrível mesmo, nada daquela chuva ralinha dos filmes e paleta de cores cinzenta que os cineastas costumam usar quando querem passar um clima mais tenso; estava fresco e ensolarado. Se eu tivesse que escolher uma forma de morrer, queria que fosse assim. Meu vô não queria que seus últimos momentos fossem enclausurados em um hospital, talvez entubado, lutando para sobreviver mesmo diante da derrota iminente, com gente estranha correndo no corredor e uma máquina apitando do lado; ele estava cercado das pessoas que amava, no conforto de sua própria cama e na segurança de seu lar.
A notícia da morte correu ainda mais depressa, logo começou a vir parente de tudo quanto é parte. A primeira a chegar foi a prima Katy, que por sorte havia acabado de voltar de Kalos para passar umas férias; ela me abraçou acanhada, meio que sem saber o que fazer, porque sabia o quanto eu era apegada com meu avô.
— Ei, Vi... como é que está?
— Ah, eu tô bem — respondi com sinceridade.
Nós nos sentamos na beirada da cama, o corpo do meu avô já havia sido retirado. Na mesinha de canto, vi o prato que minha avó havia preparado para ele — sua última refeição.
— Ele não comeu o pão com mortadela — falei.
E, pela primeira vez no dia, me permiti chorar, pois percebi que ele nunca mais ia tomar café da manhã comigo.
Comecei a mastigar o pão mesmo sem fome, eu não ia permitir que o último café da manhã dele fosse pro lixo. Céus, minha cabeça estava uma ameba. Katy me abraçou, e eu lembrei que o dia ainda nem havia começado.
O que veio a seguir foi uma sucessão de cenas esquisitas. Muita espera e correria, é como falei, morrer não é fácil. Mamãe precisou ser muito forte, perdi um vô, mas ela perdeu um PAI. Quando alguém morre, tem tanta burocracia envolvida que você pode ter certeza que pelo menos um mês inteiro você não vai ter tranquilidade; é caixão, cemitério, contas a acertar, termos e contratos, aposentadoria, muita coisa para passar adiante. Enquanto os adultos discutiam, eu me sentei na cadeira de rodas do vovô e comecei a ir para frente e para trás. Quis experimentar um pouco a sensação, saber como ele se sentia, eu nunca havia percebido como era desconfortável, por que ele nunca me contou? Quando uma tia me viu ali sentada, ela ficou em choque. Não sei se pensava que eu estava desonrando a memória dele, mas a cadeira agora era minha, pô.
Recebemos uma ligação por chamada de vídeo, e esta deve ter sido a parte mais doida do dia. Adivinha quem era? Irmão da minha mãe, um cara que se mudou para uma região distante para virar Mestre Pokémon e nunca deu satisfação a ninguém. Fazia uns quinze anos que eu não o via, ele nem era considerado parte da família; tinha sua própria vida longe de nós e, em todo esse tempo, ele nunca ligou para saber como estávamos.
“Como é que ele está?”, escutei a voz abafada do outro lado.
— Ele já morreu... — minha mãe respondeu.
“Posso vê-lo?”
Sério? Sério que ele queria ver um corpo morto? Por que ele não veio visitar quando enviamos uma carta, dizendo que a saúde do vô tinha piorado? Por que ele nunca visitou o pai nos últimos quarenta anos? Ou melhor, por que ele não volta AGORA? Seria um ótimo momento para se redimir, rever todos nós, contar sobre sua vida nova e depois voltar, ninguém estava pedindo para ele ficar para sempre. Minha mãe levou o celular até o quarto e mostrou o corpo lá parado, sei lá, vai que ele achava que era brincadeira.
“Tudo bem. Tchau”.
E essa foi a última vez que ouvi falar do meu tio. Mamãe já nem liga mais, ela diz que não devemos julgar a dor dos outros, mas... “Posso ver o corpo dele?” Fala sério, puta que pariu.

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Aqui começamos a segunda parte desse longo dia, vamos dar um pulo para o velório, porque aparece muita gente famosa e vocês vão gostar. Sabe, uma das maiores doenças que assola os idosos é a depressão — eles acham que já não são mais úteis para ninguém, um peso no mundo; palavras de amor e gestos de carinho se tornam cada vez mais raros e a fragilidade diante do que um dia foram piora ainda mais a situação. Meu avô fechou o ginásio há alguns anos, e isso acabou com ele. Batalhar era sua vida, mas é engraçado pensar que ele também tinha hobbies. Lembro quando ele me contava sobre a guerra, e me presenteou com uma medalha de sua participação! Desde então, comecei a chamá-lo de “capitão” em reconhecimento ao seu cargo como líder de ginásio. Pryce gostava também de pescar, atividades que seus colegas da Liga desconheciam. Na verdade, tem muita coisa sobre ele que nem eu sei.
Como ele morreu bem cedinho, o corpo só ficou pronto lá por volta do meio dia e o cemitério só ficaria aberto até as quatro. Minha mãe decidiu adiar o enterro para a manhã seguinte, dessa forma todo mundo que pegou um avião ou se juntou ao seu Pokémon voador para comparecer ao enterro teria tempo de chegar.
Só que isso significava passar a madrugada inteira ali, o que se revelou como uma experiência bem louca por si só.
Eu não me vesti de preto naquele dia, não dá pra imaginar uma Vivian de preto. Eu até que estava bem, me recuperando, achava que o pior já tinha passado.
— Vi, acha que pode postar uma mensagem no seu perfil, avisando todos do ocorrido? — perguntou minha mãe.
— Sim, claro — respondi. Ela não queria nada muito elaborado, só pediu para anotar o endereço e o horário do velório, para as pessoas se programarem. Passei uns trinta minutos pensando em como escrever até conseguir algo satisfatório, e enfim, postado.
Meu texto atingiu umas duzentas e cinquenta curtidas e mais de cem comentários. Uau. Nem minhas fotos de biquíni chegam a tanto.
Quando chegamos ao velório, vi gente de tudo quanto é canto, reencontrei amigos que não via há anos e recebi a visita de pessoas que eu menos esperava. O pessoal da Liga Pokémon garantiu o quarto mais chique, e nas primeiras horas da manhã não demorou para lotar; todos os líderes de ginásio da região de Johto compareceram, cada um trazendo uma mensagem motivadora ao seu próprio estilo.
— Que linda declaração de amor, Virginia! — encorajou Chuck, contendo uma ou duas lágrimas. Nem fiz questão de corrigir meu nome. — Ele foi um lutador, um verdadeiro capitão!
— Sei como é perder alguém querido, minhas orações estarão com você e toda sua família — falou Jasmine.
— Meus sentimentos — disse Clair.
— Seu avô foi um verdadeiro amigo de muitas histórias, ele era de uma sabedoria infinita. Que encontre a paz — continuou Morty. — Saiba que a morte nada mais é do que uma jornada que todos nós teremos que tomar.
Se eu disser que não sorri nesse dia, eu estaria mentindo. Que surpresa foi a minha ao me deparar com Ethan e Amy juntos; ele sem o boné, todo tímido e comovido; e ela com um par de óculos escuros maiores que o rosto para esconder os olhos inchados, sem perder a pose. Amy me abraçou forte, não perdi a oportunidade para brincar e dizer: “Tu ainda me deve uma bike”. Nós duas rimos muito, naquela hora eu estava realmente feliz por vê-los.
Junto de Ethan, era claro que tinha de vir todo o seu fã clube. Muitos velhinhos ali conheciam Pryce, alguns haviam estudado com ele quando pequenos, outros eram colegas de trabalho ou apenas espectadores que tinham tido a chance de assistir a uma das tantas batalhas incríveis que ele travara.
Um senhorzinho que eu não conhecia o nome chegou para mim e falou:
— Vivi, tenho sessenta e um anos e amaria ter uma neta como você. Um dia, quando eu partir, gostaria de receber uma homenagem como aquela que você escreveu. Esteja onde estiver, tenho certeza que ele está muito orgulhoso de ter convivido com você, que Arceus possa consolar os corações de todos que amam seu querido avô.
Sabe, ouvir aquilo de um estranho me deixou muito feliz. Eu, uma neta exemplar? Nunca fiz nada para merecer tal reconhecimento, só postei alguns pensamentos em uma rede social, mas parecia que todo mundo tinha lido. O velório estava lotado, meu avô estaria surpreso! Ele amava receber atenção, mas me entristece pensar que não está mais aqui para ver quanta gente se importava com ele. A vida é cheia dessas, quantas vezes nós só arranjamos tempo para visitar alguém depois de que ela já morreu? Sabe aquelas coroas de flores? Ele recebeu sete, todas lindas e bem decoradas, quase não tinha mais espaço do lado do caixão. E as visitas não paravam de chegar, o ambiente era preenchido por aquele burburinho baixo, uma risada ocasional irrompendo pelo aposento, uma fungada ou outra para esconder a choradeira.
A cena que mais doeu em mim — na verdade, em todo mundo que estava presente — foi quando chegou o irmão mais novo do meu vô. Como mencionei, ele é meio surdo. Eu o vi se aproximar do caixão, mas acho que não tinha noção de estar falando alto demais.
— Meu irmão! Meu irmão! Agora eu estou sozinho, e quem cuidará de mim?
Ele foi guiado por uma das netas, seu corpo tremendo e o nariz fungando, e nós ainda podíamos ouvi-lo repetir: “Agora só sobrou eu... me sinto tão só. Por que vocês me deixaram?”
Stanley, meu namorado, foi o próximo a chegar, quase comecei a chorar só de vê-lo na porta. Ele ficou ao meu lado até o fim, ouvindo, falando quando necessário. Sua mera presença me confortava, foi muito importante tê-lo por perto. Eu não estava esperando ver tanta gente vinda de Sinnoh, era uma viagem longa, até hoje não sei como eles fizeram para chegar tão rápido. De noitinha, Luke e Lukas chegaram com sua família, fiquei de boca aberta ao saber que até o pai deles, o famoso ex-campeão, Walter Wallers, também estava junto.
Lukas, meigo como sempre, quase me arrancou mais lágrimas. Luke, por outro lado, me fez rir quando eu achava que meu mundo não tinha mais cor.
— Vivian, você é uma das primeiras e únicas pessoas nesse mundo que tiveram a proeza de fazer meu pai chorar — disse Lukas. — Sério, quando ele leu aquele seu texto, mamãe me contou que o viu chorando bem baixinho, escondido no quarto.
Conversar com aqueles dois irmãos no meio madrugada me deu mais energia para aguentar as difíceis horas que se seguiram — afinal, o enterro só poderia ser feito às oito.
— Ei, Luke, acha que pode me emprestar os óculos escuros do seu Garchomp? — perguntei.
— Claro, por quê?
— Sei lá, só pra me prevenir. Depois eu devolvo.
Meus amigos de Sinnoh não pararam de chegar, acho que não consegui esconder minha cara de terror ao me deparar com Marley, minha rival de longa data dos tempos do Grande Festival. Ela só veste preto, naturalmente, então não estava muito diferente do que eu estava acostumada a vê-la, mas quando me abraçou, meu peito se apertou ao perceber que ela também chorava.
— Você precisa ser forte agora — disse Marley.
Dawn e Cynthia foram as últimas a chegar, quase às três da manhã, quando fazia mais frio. Em outros tempos, eu diria que aquele encontro teria sido muito feliz, meus amigos de jornada, todos reunidos. Quando eles souberam que eu passaria a madrugada toda no velório, eles prontamente se ofereceram para ficar lá comigo. E como eu poderia recusar? As horas passaram mais depressa na companhia deles, tínhamos tanto a discutir.
Quando o dia já ia amanhecendo, a maioria já havia adormecido como puderam nas desconfortáveis poltronas. Melyssa nos trouxera um bolo, e Cynthia saiu para comprar o café da manhã. Eu estava deitada no colo de Stanley, com os olhos pregados de tanto sono, quando senti que queria compartilhar uma experiência com ele.
— Eu me lembro do último ano novo que comemorei com meu avô.
— E o que vocês fizeram? — perguntou Stan.
— Quando bateu meia noite, ele começou a chorar. Eu fiquei sem reação, afinal, estava todo mundo comemorando o começo de um novo ciclo, se abraçando e brindando, enquanto eu fiquei lá parada do lado dele na cadeira de rodas, sem conseguir abraçá-lo.
— Mas você estava ao lado dele, Vi. E eu garanto que isso o deixava contente.
— Acho que ele sabia que havia chegado a hora. Gosto de dizer a mim mesma que, nesse momento, um anjinho chegou bem perto dele e falou: “Sr. Pryce, esse é seu último ano aqui na Terra, tá bem? Aproveite o máximo que puder”.
Oito horas da manhã, o céu clareou e o dia continuava lindo.
Olhei uma última vez para o rosto de meu avô antes de fecharem o caixão.
— Quem irá carregá-lo? — ouvi Dawn perguntar baixinho.
São necessárias seis pessoas para carregarem o caixão, é um percurso curto, mas muito significativo. Eu me enchi de orgulho ao saber que na frente iriam o tio Walter e o Lance, que chegara havia pouco de uma viagem de emergência, só para o enterro; os outros três foram o Chuck, Falkner e Ethan; normalmente eles preferem que apenas os homens façam isso, mas qual foi a minha surpresa ao saber que eu seria a última convidada.
Foram os doze metros mais longos da minha vida.
Fizemos a caminhada em silêncio até o cemitério, fui subindo de mãos dadas com Marley e Stanley de cada lado. Mesmo que a maioria das pessoas que compareçam no velório não fique até a hora do enterro, ainda devia haver umas sessenta pessoas, o suficiente para fechar a rua. Minha mãe sempre disse que velório não é lugar para a criança, por isso nenhuma das minhas primas de Azalea mais novas compareceram — o que foi um alívio, eu não teria suportado ver nenhuma delas chorando.
Nossa longa jornada estava quase chegando ao fim. Na pequena catedral, tivemos nossa última despedida do vovô, de um jeito mais particular. Fazia anos que eu não entrava em um cemitério, mas desde aquele dia eu tenho ido todo mês levar algumas flores, acender velas. Meu pai costumava dizer que não gostava de cemitérios, porque o que ele tinha para dizer aos vivos já havia sido dito, mas eu gosto dessa ideia de prestar as devidas homenagens aos mortos. É um ambiente sagrado, e muito belo se você souber reparar.
Os adultos levaram um tempão decidindo se o vovô seria enterrado do lado Azalea da família ou como um membro honorário da Liga, mas foi minha avó quem deu a palavra final:
— Ele sempre quis que fôssemos enterrados juntos — disse Katherine.
O túmulo da nossa família é bem grande, espero que o vovô goste. Eles destamparam o mármore e, enquanto dois homens desciam o caixão, nós ficamos lá, olhando.
Eu vi Lance tirar um papelzinho do bolso do paletó. Ninguém tinha me contado que ele havia preparado um discurso, imaginei que seria incrível um homem respeitado como ele dar as últimas palavras ao falecido. Com seu vozeirão, Lance começou a falar:
— Ontem a noite, me pediram para dizer algo bonito na hora do enterro, mas para ser sincero, eu não encontrei nada que chegasse nem aos pés dessas palavras tão lindas e honestas que eu lerei aqui para vocês.
Os homens continuavam cavando. Lance abriu o papel e começou a ler:
— “Hoje uma garota se despede de seu capitão”.
Ah. É o meu texto. Coloquei os óculos escuros, porque ia começar a chover.

“Hoje uma garota se despede de seu capitão. Meu avô encontrou a calmaria depois da tempestade. Fico a pensar em todas as lembranças dessa longa viagem, quando o conheci ele já tinha os cabelos branquinhos e, apesar de eu ter tido a chance de acompanhá-lo por um breve período de sua vida, sinto muito orgulho deste velho capitão — das caras engraçadas que ele fazia e dos momentos de lazer com quebra-cabeças, do eterno carinho pela minha avó que me faz acreditar no amor.
Oitenta e cinco anos de aventuras! Lembro quando ele me deu uma medalha que diz ter ganhado nos seus dezoito, de volta aos tempos da guerra. Será que ele lutou bravamente? Ele era um líder, um verdadeiro treinador; mas também um pai dedicado, um avô brincalhão, um amigo gentil. Ele amava andar com sua Swinub gordinha debaixo do braço, mas ela se foi antes. Hoje cedo ele também descansou em sua cama confortável e, veja só, estava um dia lindo! Muito bom para pescar, uma de suas atividades favoritas. Nós deveríamos ter pescado mais, só que eu sempre morri de nojo de pegar nos peixes, desculpe... Eu coloquei uma roupa bem bonita hoje, porque ele gostava de me ver chique, prendi a medalha no peito para me lembrar de todas suas conquistas e vitórias até aqui, mesmo as que conheci apenas através de breves histórias.
Hoje, as cortinas de prata abrem caminho para praias brancas. Independente da crença ou religião, espero que lá no futuro possamos nos encontrar de novo num barquinho, onde meu bom e velho capitão estará me esperando com sua Swinub gordinha do lado. Ele vai me olhar com aquele sorriso tão raro e espontâneo, do jeitinho como lembro, e vai dizer:
— Vivian, que bom que está aqui comigo!”
Saudades eternas, vovô. Me espere.



Em homenagem à Teruo Ikeoka.
14/10/1931 ~ 28/03/2017



Artbook - Dawn Manson 2.0

Se a Vivian passava a sensação de ter sido completamente abandonada da terceira temporada em diante, temos aqui a campeão do esquecimento — Dawn Manson tinha tudo para ser a verdadeira protagonista da jornada, é com ela que começa a aventura, desde o Capítulo 1 até o incidente com as famosas batatas gratinadas. E nunca, em momento algum, ela segue sua motivação de querer se tornar uma pesquisadora.

Tudo bem, no começo até vemos um pouco de sua experiência ao lado do Profº Rowan, mas isso se perdeu conforme a história progredia e havia inúmeros fatos mais interessantes para se trabalhar, como a Liga Pokémon, o Grande Festival e o Team Galactic. Dawn sequer teve um final decente, até o último capítulo ela foi apenas a parceira romântica de Luke e, para quem leu o Capítulo 100, deve ter sido um choque saber que os dois terminam. Mas a verdade é que esse foi o momento para que ela crescesse de verdade.

Dawn só recebeu a atenção que merecia no Capítulo 101, onde descobrimos que ela passou a viver com Cynthia e começou a faculdade. No Aventuras no Desconhecido, vemos um pouco mais de seus esforços com o estudo e nos divertimos com o jeito mais responsável dela, ainda que a garota meiga e insegura continue ali em algum lugar. Precisei de mais de 250 capítulos e  quase nove anos de história (AeS nasceu em Março de 2010), para entender o que eu queria para a Dawn e apresentar um desfecho adequado. O que será que o futuro guarda para essa jovem aspirante a pesquisadora?

Artbook - Vivian Chevalier 2.0


Vivian Chevalier é uma das personagens que eu mais senti que foi injustiçada no final do Aventuras em Sinnoh. Depois de ter brilhado tanto na Saga Pérola, aos poucos ela foi dando espaço para outros personagens mais interessantes e até mesmo para os Pokémon com a ascensão dos Fire Tales, de forma que acabei deixando para trás uma das primeiras rivais da jornada que deu as caras ainda no Capítulo 6.

Naquela época, eu usava uma arte "roubada" do Deviant, mas depois que a história tomou mais forma comecei a ilustrar meus próprios personagens e a Vivian foi ganhando uma carinha nova. Ela cresceu bastante de lá para cá, de simples treinadora de Pokémon inseto ela ganhou uma trama mais profunda com a chegada das famosas Primas de Azalea, que infestam todo o universo da Aliança Aventuras.

Sua mais recente aparição foi no especial do Aventuras no Desconhecido, que acontece três anos depois do final da jornada dos Irmãos Wallers. O que me fez voltar a prestar atenção na Vivian foi porque ela deu as caras tanto em Kalos quanto em Johto, e a forma como o Haos e o Dento a trataram com tanto carinho me fez lembrar porque eu gostava tanto dessa personagem. A arte da Vivian criança é baseada em sua aparição em Johto, isso oferece alguma dica de onde se situa a timeline da Aliança Aventuras?



Notas do Autor [AnD 4]


E assim, encerramos mais uma história aqui no Aventuras em Sinnoh... será a prelúdio de uma nova jornada que começa? Será a última? O tempo dirá.

Quando planejei o final para o Aventuras no Desconhecido, pensei em todos os autores que deixaram suas histórias em algum momento. É (in)direta pra todo mundo, sim. Cada fic abandonada é um mundo que nunca mais verá a luz do dia, quem sabe até fosse algo que teria grande potencial. Gosto de pensar que quando se abandona seus personagens eles vão parar em um lugar distante, quem sabe um mundo inverso onde possam encontrar um desfecho adequado. Nos primórdios da Aliança Aventuras, quando o Thiago ainda escrevia a história das Ilhas Laranja, lembro que a Julia era uma das personagens que eu mais adorava. Fiz desenhos dela e até participei do Talk Show que na época me fez dar tanta risada. Hoje, é como se a Julia já não existisse mais para as outras pessoas. Ela vive apenas na minha memória, exatamente como aconteceu com a Vivian.

Quando penso na história da Julia, para ser bem sincero, eu já me lembro de pouca coisa. Tenho vagas lembranças da sua personalidade, de como ela era divertida e me fazia rir... mas a presilha em forma de borboleta foi algo que me marcou. E o ato final da Vivian, em entregar a presilha, significa que ela também a deixou ir. Não há mais necessidade em prender Julia nas suas lembranças até que elas desapareçam por completo, é a forma de mostrar que a Vivian cresceu e a perdoou por ter ido embora. Agora, cada uma trilhará caminhos diferentes, como acontece na vida. Mesmo que a antiga história das Ilhas Laranja já nem exista mais, sinto que eu devia isso para essas personagens.

Escrevam muito, sigam seus sonhos, se esforcem por tudo aquilo que vocês criaram. Você é o seu mundo, e ele importa demais, nem que seja apenas para você e alguns bons amigos.

E emendando no assunto de interligações, espero que vocês tenham notado aquela aparição inusitada na colina... É, meus caros, agora a nossa tão falada timeline está se formando e temos aqui algumas pistas das grandes!

Ah, e não podemos deixar de falar sobre o real motivo que levou Vivian a sair dessa jornada. Ela precisava descobrir algo novo sobre si própria, ou talvez apenas redescobrir uma saudade que já existia. As fotos são extremamente importantes para a trama, pois é no mural onde ela prende essas lembranças de tudo aquilo que viveu para o resto da vida e, quando olhá-las, poderá sentir aquele misto de saudade e nostalgia. Eu gosto de imaginar que o blog é o mural de vocês, e vez ou outra os leitores também voltam aqui para sentir esse misto de emoções.

E agora, vamos para a última sessão de fotos e referências ao Pokémon Snap original!
Victreebel maneiro. Pra conseguir fotografá-lo, você precisa acertar uma maçãzada na cabeça do pobre Weepinbel e afogar ele na água. Eu amo esse jogo.

O famoso ovo de Articuno. Isso aqui faria qualquer jogador da franquia principal arrancar os cabelos, afinal, "ain, Lendário não tem como dar ovo nem procriar e mimimi".

Uma das paisagens que acho mais bonitas nesse jogo (claro que dentro dos padrões que um Nintendo 64 oferecia), logo no comecinho do vale.

Escrever o Aventuras no Desconhecido foi uma das tarefas mais prazerosas que tive nos últimos anos. Não precisei pensar muito para elaborar nada, a cena do redemoinho por exemplo estava nítida na minha mente, basta pensar no momento em que cruzamos com o Dragonite, porque desde criança eu pensava: IMAGINA QUE DOIDO SERIA CAIR ALI DENTRO?

Outro ponto chave foi a cabana misteriosa. No jogo, assim que acessamos esse local a primeira vez o profº Carvalho nos fala sobre os signos Pokémon e pede que voltemos para fotografá-los, e depois ela fica completamente abandonada. Que fim levou? Será que alguém fez desse lugar sua morada? Hm...

E só para fechar, eis aqui algumas explicações para quem não entendeu o final: apesar de Vivian estar satisfeita com a resposta de que o misterioso C era de Cynthia ou Carvalho, na verdade o remetente secreto não era ninguém menos do que... um certo Canas Ominous, conhecem? Uma singela carta do autor — ou seria do destino? — que trouxe de volta uma personagem que recebera tanto carinho no passado e nunca encontrou uma conclusão adequada.

E assim, posso dizer que sinto o coração leve e a mente tranquila ao saber que Vivian, Stanley e até mesmo Dawn continuam a viver suas aventuras com tanta dignidade quanto os Irmãos Wallers, livres e eternos na mente dos leitores que abrirem esse blog para ler mais uma página.

Aventuras no Desconhecido [Capítulo 4]

Capítulo 4 – Cavern & Valley
[FINAL]

Os dias que se seguiram na Ilha Pokémon foram repletos de surpresas agradáveis e paisagens exuberantes. Dawn lhes mostrara uma passagem secreta descoberta na saída do riacho que levava a uma caverna oculta repleta de cristais, onde Vivian e Stanley se depararam com criaturas incríveis de todos os tipos. A ruiva tomava todo cuidado para que o flash da câmera não cegasse nenhum Pokémon, por isso as fotos não ficaram tão boas; estavam mais ocupados tentando fugir de um Victreebel furioso e um Muk fedorento, adormecido na fenda mais profunda da caverna. Dentre as maravilhas encontradas, os vestígios do ovo de Articuno foi o que mais recebeu atenção, tanto que Stanley precisou guardar uma lasca tão dura e brilhante quanto um diamante.
Logo completaria uma semana que estavam alojados — ou melhor, perdidos — na ilha remota. Em dados momentos, sentiam como se tivessem ficado presos em um parque de diversões que fechara para uso exclusivo no fim de semana, sem horário para voltar e nem pais para fiscalizar o que quer que estivessem fazendo.
A preocupação com a forma que encontrariam para escapar dali parecia uma realidade distante — a selva oferecia alimento de sobra, tinham a água potável de nascentes e até energia por conta dos geradores na usina que alimentava o laboratório onde Dawn fazia sua pesquisa. E se decidissem ficar? E se aquele era seu destino, viver como um Pokémon selvagem? Primeiro, eles precisavam sobreviver aos desafios da ilha.
A famosa cadeia de montanhas que formavam a imagem de um Dugtrio podia se vista do início do vale. O ZERO-ONE se adaptara ao seu formato de bote e agora flutuava tranquilo no percurso, guiado pela correnteza que descia o vale.
Rema, Stan! Esses seus bracinhos só servem pra fazer massagem? — gritou Vivian.
Os dois não contavam que ZERO-ONE apresentaria um defeito durante a excursão. Vivian e Stanley se espremiam dentro do automóvel tentando não se molhar; não fora uma boa ideia os dois terem ido juntos, deviam ter escutado a voz da consciência de Dawn que insistiu no fato dele ter sido construído para um único passageiro.
— Deixar nossos Pokémon no laboratório foi uma ótima ideia, viu — disse Vivian irritada, pressionando a mesma tecla havia uma hora. — “Drinian e Primia precisam de um tempinho juntos também, vamos deixá-los aqui com todos nossos Pokémon enquanto saímos SOZINHOS por aí para explorar uma ilha PERIGOSA E MORTAL!”
— Ah, mas você não negou na hora, né? — respondeu o rapaz, empurrando o bote com um remo improvisado feito de um galho para que não batessem nas rochas pelo percurso. — Se ao menos eu tivesse meu Gyarados, ele nos tiraria daqui em um instante.
— Seu Gyarados é um medroso, isso sim! Ficou com medinho de enfrentar aquele leviatã no oceano só porque era duas vezes maior do que ele.
— O coitado tá traumatizado até hoje... — disse Stanley. — Vou conversar com ele quando voltarmos.
— Isso se a gente voltar.
Vivian tentou relaxar, mas estava tensa demais. O sol forte fazia o rosto arder e a quantidade de Pokémon aquáticos curiosos que tentavam derrubá-los era insana; de um grupo de Squirtles arteiros até um cardume de Magikarps desesperadas em respirar. Vivian conseguiu fotografar apenas a cauda de um Dratini que saltou tão rápido que deveria estar usando o Extremespeed, um Goldeen belíssimo espirrou água em seu aparelho que parou de funcionar por breves trinta segundos — o suficiente para que Vivian tivesse um mini-infarto —, mas quase todas as fotos do vale estavam ficando horríveis. Aquele não era mesmo um dia para sair de casa.
— Tá dando tudo errado — resmungou a garota, como se o universo conspirasse ao seu favor.
— Pelo menos temos um tempinho só nosso.
— É, mas estou ficando meio enjoada de só poder olhar pra sua cara.
Ouch — resmungou Stanley, chateado. Vivian só podia estar naquela fase, mas agora precisava aguentá-la, visto que não tinha para onde fugir.
O bote flutuou tranquilo até uma ilhota onde um grupo de Gravelers se amontoava para dormir. Havia muito que se olhar na paisagem do vale que era de um laranja penetrante, suas enormes paredes de rocha se erguiam como se estivessem olhando um cânion inundado de baixo para cima, não havia um lugar parecido com aquele em nenhuma outra região do mundo Pokémon.
Um Sandshrew arteiro já os acompanhava no percurso havia pelo menos uma hora. Ele entrava debaixo da terra quando percebia que o observavam, mas parecia gostar de seguir a estranha presença de dois humanos em sua morada. Vivian tirara tantas fotos dele quanto conseguira.
— Tenho um amigo em Johto que tinha um Sandslash, foi um dos primeiros parceiros de viagem dele — disse Vivian enquanto verificava a qualidade das imagens. — Quando eu era pequena, lembro que meu avô Pryce o enfrentou com seu Sandslash de gelo, foi uma das batalhas mais legais que pude presenciar, gosto muito dessa espécie desde então.
— Hm — Stanley respondeu meio desinteressado.
— Ah, vai começar a dar resposta seca agora? Melhor conversar com uma parede.
— Só estou meio cansado, Vi.
— Você tá um cu hoje, hein? Cacete — reclamou Vivian frustrada.
— Epa, epa! Pra que tanta raiva? Isso não vai nos ajudar em nada.
— Estou aqui tentando criar um diálogo pra essa viagem ser menos maçante e você não colabora!
— Então senta e aproveita a paisagem — continuou Stanley.
— É, acho que vou mesmo. Melhor do que conversar com você.
O Sandshrew grunhiu alto. Vivian olhou para a criaturinha que se movia de forma frenética, como se estivesse tentando avisá-los de alguma coisa.
— Olha lá, nem ele quer nos ver brigando, então vê se para, tá?
— Acho que não é isso que o Sandshrew está tentando dizer, Vi...
Stanley apontou para frente. O bote ganhava velocidade, seguindo a correnteza em direção de uma dúzia de cascatas que desaguavam onde os olhos não alcançavam. Os dois começaram a remar desesperados na direção oposta, o pobre Sandshrew não tinha nem chance de se aproximar ou pedir que seus amigos do tipo terrestres o ajudassem. Incapazes de adiar o inevitável, Stanley abraçou Vivian com mais força para que ela não caísse do bote e os dois se deixaram levar.
O ZERO-ONE colidiu com força contra rochas, mas sua estrutura rígida aguentou firme. Eles desceram tão depressa pela correnteza que três Staryus apareceram girando velozes por pensarem que eles estavam brincando. O bote mergulhou fundo com a queda da última cachoeira, mas suas boias haviam sido feitas para resistirem a qualquer impacto. Encharcados, apavorados e com água até o pescoço, a correnteza pareceu finalmente dar uma trégua. O coração de Vivian batia forte, ainda tremendo com o ocorrido, ela encostou a cabeça no ombro de Stanley e falou baixinho:
— Estou ficando cansada dessa ilha... por favor, vamos embora.
O rapaz concordou com a cabeça, agora só precisavam encontrar um meio.
— Era só o que me faltava — falou Stanley, olhando mais a frente.
Vivian notou que a água toda do vale era sugada para o centro do que parecia um redemoinho a poucos metros da praia. Os dois pegaram seus remos, mas estavam sem forças para enfrentar a fúria da natureza.
Rema, Stan! Que baita final idiota seria se morrêssemos aqui, enfrentamos o fim do mundo e uma Liga Pokémon pra terminar afogados! Rema! Rema! Puta que pariu, como eu odeio esse lugar!
— É uma boa hora para sermos salvos pelo Poder da Amizade, não acha? — gritou o loiro em resposta.
— Tá esperando que a Dawn apareça aqui com o Piplup dela? Vai sonhando!
O redemoinho ganhava força, sugando tudo ao seu redor. Como de forma milagrosa, Stanley pressionou todos os botões que conseguiu ao mesmo tempo e o ZERO-ONE voltou a funcionar, empurrando-os com um tranco para longe do redemoinho e levando-os em segurança para longe dali.
Vivian respirou aliviada. Depois dessa experiência, nunca é que tentaria voltar para o continente nas costas do Gyarados de Stanley, o oceano poderia se revelar ainda mais cruel e imprevisível. Sem contar que o leviatã ainda estava por ali, rondando a ilha. Como o vale desaguava no mar, eles puderam enxergar suas barbatanas bem longe como um submarino gigante, esperando outras malas ou viajantes desavisados para jogar no estômago.
A correnteza se separava em duas rotas, a segunda levava para uma lagoa calma e tranquila que foi a primeira opção dos viajantes. Para a surpresa mútua, havia uma cabana de madeira ali. Eles estacionaram o ZERO-ONE na costa e saíram da água alongando as pernas depois de tantas horas espremidos dentro do bote.
— Quer ir dar uma olhada? — perguntou Stanley.
Vivian deu de ombros. Não tinham outra alternativa que não fosse esperar o Gyarados gigante sair da rota, precisavam levar o ZERO-ONE até os trilhos enferrujados na praia de onde seguiriam com tranquilidade até o laboratório. A rota do vale, nunca mais.
A cabana era de um aspecto rústico, mas parecia recente demais para os pesquisadores que se alojaram na ilha havia vinte anos. De mobília simples, contava com cortinas delicadas e almofadas em formato de Pokémon que davam um toque a mais de meiguice; havia varas de pescar nos armários e comida podre nas prateleiras, era como se seus donos tivessem saído às pressas. Uma cama de casal de lençóis brancos fez Vivian imaginar que as pessoas que ali moravam deviam ser felizes com a vida que levavam; conviviam com o que a natureza os oferecia e não havia nenhuma outra preocupação do mundo exterior para aturdi-los.
— Imagina só nós dois morando aqui, mozão? — insinuou Vivian, já um pouco mais tranquila e doce do que horas atrás. — Poderíamos virar nudistas, plantar algumas berries, cultivar batata... não é a nossa cara?
— Tá doida? Você não é mais a exímia caçadora de insetos de quanto tinha quatorze anos. Naquela época, eu até entendo que conseguiria viver só do que a natureza te fornecer, mas na hora que a sua última carga de bateria acabar, aposto que você pira.
— É, mas o sangue de Azalea ainda passa por minhas veias! — respondeu, tentando se convencer de que não era tão dependente da tecnologia quanto Stanley insinuava.
Stanley já deixara a cabana, mas Vivian quis dar uma última olhada. Ela ajoelhou-se e vasculhou embaixo da cama, onde encontrou o que parecia ser uma presilha. Ao puxá-la, reconheceu o formato na mesma hora — uma Butterfree azulada, sujo e gasto, mas era inconfundível.
— Stan. Stan. Stan! — Ela começou a berrar. — Meu Arceus, você não vai acreditar no que encontrei!
Vivian voltou correndo para o namorado com a presilha em mãos, as palavras que saíam de sua boca mal faziam sentido.
— O que é isso? — ele perguntou surpreso. — Algum objeto raro?
— Stan, isso pertencia à minha prima, Julia!

i

Vivian e Stanley correram de volta para o laboratório com o ZERO-ONE ligado no modo de tração no máximo. Uma tempestade forte parecia se aproximar, pois uma nuvem cinzenta do tamanho de uma cidade se formou sobre o céu da ilha. Dawn até se assustou com a chegada repentina dos dois, estava estudando os Porygon quando uma ventania atravessou a porta e Vivian saiu atropelando suas mesas e anotações com a mão erguida.
— Dawn, tem mais alguém morando nessa ilha? — A ruiva perguntou enquanto chacoalhava a amiga. — Você viu mais alguém nesse tempo que ficou aqui? Por favor, me responde!
— C-calma, Vi... — respondeu Dawn, ajeitando os óculos e limpando o jaleco. — Céus, vocês estão péssimos. Por que demoraram tanto?
— Ficamos presos no vale, mas isso não importa agora — disse Vivian, erguendo a presilha na frente dela. — Isso. Como é que isso veio parar aqui?
— Eu não tenho como saber. — Dawn tentou mantê-la calma, pois percebera que o assunto deixara sua amiga exasperada. — Antes de mais nada, onde o encontrou?
Stanley puxou uma cadeira para que Vivian se sentasse, ela estava tensa demais para dizer qualquer coisa, mas tentou organizar as palavras como pôde.
— Essa presilha é idêntica à que minha prima Julia usava... só ela tinha, era uma marca dela, quando lembro de seus cabelos loiros penso neles presos para trás com esse prendedor, e só consigo... só consigo pensar...
— Calma, Vi — disse seu namorado. — Antes de mais nada, quem é Julia?
— Quem é Julia?! Ela é só a mandante das Primas de Azalea, minha inspiração! Pensa numa atriz bonitona e multiplica por mil vezes, ela é a Gardevoir do mundo Pokémon, ela é minha deusa, minha louca, minha feiticeira! Eu me inspirei a vida toda na Julia, queria ser como ela quando crescesse, mas de uns anos para cá perdemos totalmente nosso contato e, do nada, essa presilha cai em minhas mãos, só pode ser um sinal!
Dawn e Stanley se entreolharam, tentando ligar os pontos.
— Por que você nunca nos contou dessa prima se ela é tão importante para você? — perguntou Dawn.
— Nunca contei? Hah! Como se eu... nunca contei mesmo? — indagou Vivian confusa.
— Eu conheço todas as suas primas de Azalea — disse Stanley. — Você fala tanto delas que conheço cada uma por nome, mas eu nunca ouvi falar de nenhuma Julia.
— Vocês só podem estar brincando. Eu vou mostrar a diva que era essa mulher.
Vivian tirou seu celular da bolsa e começou a vasculhar as fotos mais antigas que tinha com a prima de quando eram crianças, mas quando chegou ao limite de suas recordações percebeu que não havia nada. Acessou o Zap-Zapdos, mas lembrou-se que Julia não era do tempo de smartphones e provavelmente nem saberia como usá-los; pensou nas cartas que deixara em casa, mas estavam longe demais para provar que a caligrafia dela estava ali, que ela era real.
— Vi — Stanley tocou as costas dela gentilmente. — Essa garota... existe mesmo?
— É claro que existe! Tá me achando com cara de doida? Calma que eu vou achar, lembro dela ter me mandado uma foto do arquipélago das Ilhas Laranja faz um tempo, era cada cenário surreal que até parecia ser fake.
— Espera — Dawn começou. — Ilhas Laranja?
— É — Vivian balançou a cabeça impaciente. — Sei que quase ninguém conhece, tem gente que nem considera canon, mas é um baita de um lugar bonito para visitar, um dia pretendo ir até lá com minha prima para ela mostrar a vida de luxo que tem tido nos últimos anos, porque só aceito isso como desculpas para alguém demorar tanto só pra entrar em contato. Quanto custa pra enviar uma cartinha pra outra região, uns quinze conto?
Dawn e Stanley se entreolharam pasmos e pareceram compartilhar pensamentos. Vivian continuava com os olhos fixos na tela do celular, seus amigos procuravam a melhor forma de dar-lhe a notícia, mas nenhuma pouparia o choque abrupto que viria a seguir.
— Vivian, você... não ficou sabendo? — perguntou a pesquisadora.
— Sabendo de quê?
— As Ilhas Laranja...
— Quê que tem as ilhas? Vai me dizer que não são laranja?
— ... afundaram — respondeu Stanley com a voz séria.
Vivian parou de mexer no celular e olhou para ele.
— Tá me zoando?
— Não, Vivi, jamais brincaríamos com isso! — respondeu Dawn. — Apareceu em todos os noticiários na época, foi notícia por meses, um desastre terrível! Acho que foi antes até de começarmos nossas jornadas por Sinnoh.
Vivian começou a fazer as contas com os dedos, e o tempo em que Julia parara de enviar cartas batia com as datas.
— Eu não fazia ideia — murmurou a ruiva, sem reação.
— Você tinha parentes lá? — perguntou Stanley. — Caramba, Vi, isso é terrível. Eu não fazia ideia... você não assistia TV? Seus avós teriam te contado, alguém na sua família saberia disso.
— Eu nunca gostei muito de TV, tá legal? Eu sempre dizia para meus pais que não queria saber das tragédias do mundo, nunca fui de me atualizar com notícias, mas... cacete, vou provar que existe.
— Existe o que?
— Minha prima, oras!
— Qual delas?
Vivian abriu a boca, mas a fechou devagar.
Não lembrava.
Não era possível que tivesse esquecido o nome dela, era como se uma força exterior arrancasse seu brinquedo favorito de dentro da caixa. Sabia que a conhecia, então por que aquelas lembranças maravilhosas pareciam se tornar escassos, como uma história contada por outra pessoa?
Vivian abriu a galeria do celular e voltou a procurar qualquer registro da prima. Talvez se continuasse insistindo encontraria alguma imagem ali para mostrar que eles estavam errados, que tudo não passara de um mal entendido.
Será que sua família também conspirara para ocultar aquela informação? Seus avós sabiam e ela era a última a saber, como sempre acontecia? Quando se deu conta, haviam lágrimas escorrendo pela tela principal.
— E-eu acho que tenho o número antigo — disse Vivian com a voz trêmula. — Vou ligar pra ela, mas talvez não me atenda porque é muito ocupada, sabe... a essa altura deve estar bebendo Berry Juice na sombra de uma palmeira ao lado da namorada. E-eu lembro da voz dela. Minha prima. Minha melhor amiga...
Vivian começou a chorar compulsivamente. Stanley tirou o celular da mão dela e a abraçou com força. Queria confortá-la, mas sabia que nenhuma palavra que dissesse aliviaria aquele peso. Talvez estivessem só sendo precipitados, talvez tudo não passasse de um mau entendido que ainda os faria rir muito daquela situação dali a alguns anos, mas naquele exato instante machucava tanto que chegava a doer. Vivian enterrou o rosto no peito dele, agora incapaz de conter os soluços altos e as lágrimas que molhavam sua camisa; vê-la chorar era uma cena tão dolorida que Stanley se via desarmado, poderia chorar a qualquer momento junto dela, mas queria ser forte para suportar o sofrimento pelos dois.
Nenhuma foto, nenhum relato. Será que Julia viveria apenas em suas memórias?
— Por favor, não me deixa esquecê-la... — disse Vivian, enterrando a presilha em direção ao peito como se quisesse trocar o seu coração pelo dela. — É a única coisa que sobrou...
Começou a ventar muito lá fora, não tardou para que uma chuva torrencial caísse com uma força que somente ilhas tropicais conheciam. Dawn identificou uma tempestade vinda do oceano que ela só presenciara uma vez na vida quando era criança e lhe trazia lembranças avassaladoras; a imagem do bote tentando evacuar a ilha de Dewford, em Hoenn, que custou a vida de seus pais ainda atormentava seus sonhos.
Vivian ergueu-se depressa e se desvencilhou dos braços de Stanley, correndo para fora.
— Não deixe ela sair, é muito perigoso! — implorou Dawn.
Vivian correu depressa e bateu a porta. O vento estava tão forte que as palmeiras se curvavam perante ela. Não era possível enxergar um metro a sua frente, uma enxurrada de folhas era varrida para longe, as gotas perfuravam como navalhas.
Pare de brincar com as minhas lembranças! — Vivian gritou com as mãos na cabeça, como se condenasse as divindades. — Eu odeio essa ilha!
Stanley tentou abrir a porta, mas o vento estava tão forte que precisou usar todo o peso do corpo para empurrá-la. Ele chamou Primia, a Scizor era forte e pesada o bastante para agarrar sua treinadora e trazê-la para dentro, mas Vivian gritava para o céu como se esperasse uma resposta para as consequências que a assolavam.
— Vivian, sai daí! — gritou Stanley. — É muito perigoso!
Um raio iluminou o céu cinzento, cortando o véu esfumaçado que se formava. Vivian fechou os olhos e esperou ser atingida, quem sabe assim pagasse pela displicência de nunca ter sequer investigado o motivo de sua prima ter parado de entrar em contato havia tantos anos. Um trovão esbravejou, tão alto e ensurdecedor quanto a ira de Thundurus. O raio veio em seguida como uma lança.
O metal de Primia atraíra uma descarga elétrica tão forte que foi como se todos ali tivessem sido atingidos por um Thunder. Vivian sentiu o impacto no peito e caiu de bruços no chão a quatro metros dali, imaginando estar morta. Na verdade, não ligava. Preferia que acabasse assim mesmo. Com o rosto sujo de lama, ela fechou os olhos e esperou que a morte a levasse, mas no minuto que se seguiu estranhou a calmaria que a cercara.
Uma mão estendeu-se em sua direção. Ela olhou para cima e enxergou o rosto de Julia, tão puro e angelical, mas com aquele semblante sacana de quem a puxaria escondida para um banheiro público para fazer besteira.
“Vai mesmo ficar aí deitada, sua preguiçosa? Não é assim que as Primas de Azalea se comportam”.
Vivian não tocou a mão dela, mas sentiu alguém levantá-la no colo.
— Graças aos céus, ela está viva — ouviu a voz de Dawn, fraca e distante.
Não soube dizer quanto tempo ficara naquela situação, mas pareceu levar apenas alguns segundos. Estava com o rosto ensanguentado por uma rocha que a atingira e sentia muito frio.
Ao abrir os olhos, viu Stanley debruçado sobre ela com os olhos lacrimejando.
— E-eu não saberia o que fazer se te perdesse... — disse o rapaz entre soluços enquanto a acariciava no rosto. — Você é minha vida.
— Calma, mozão — disse Vivian daquele jeitinho que só ela conseguia. — Vaso ruim não quebra.
Os dois tentaram rir, mas a situação não permitia. Primia estava muito ferida, mas graças a ela o impacto do raio não fora nem metade do que seus treinadores receberam. Drinian estava aninhado ao lado da Scizor enquanto Dawn revirava seus pertences atrás de um Hyper Potion e um Paralyz Heal. Era muito mais fácil um Pokémon se recuperar daquele dano do que um humano.
— Eu vi minha prima, Stan... ela tá bem — falou Vivian.
— Sério? — perguntou ele, cheio de esperança. — E ela é bonita, que nem nas suas lembranças?
— Linda. Como uma deusa, uma louca, uma...
Vivian fechou os olhos, exausta, e adormeceu um sono tranquilo onde sonhou com sua família reunida no natal, festejando a ceia e comendo até não aguentarem mais.

ii

Após uma noite turbulenta, a tempestade deixara estragos permanentes na ilha, Dawn tentava tranquilizá-los ao lembrar como a natureza era única e perfeita, sendo capaz de se recompor sozinha em questão de alguns meses para a fauna tão característica que a compunha.
Na manhã seguinte, Vivian foi andar logo cedo na praia para apreciar o nascer do sol. O local estava vazio sem a presença de nenhum Pokémon, nem mesmo os Lapras ou o Gyarados gigante deixaram suas tocas. Ficou sentada sobre um tronco de árvore caída observando o mar quando seus amigos se aproximaram e sentaram-se ao lado, em silêncio. Stanley sabia que quando a namorada ficava quieta demais era porque havia algo errado.
— Vocês acham que eu fiquei louca? — perguntou Vivian. — E se ela nunca existiu mesmo?
— É sua prima, pô. Se você diz que a conheceu, quem somos nós para duvidar? — brincou Stan.
Vivian começou a massagear o coração, sentia ele estranho desde que por pouco não fora atingida pelo raio.
— Esse espaço no coração... parece que nada vai preenchê-lo — disse a ruiva. — Por que as pessoas precisam ir embora? E por que depois que elas se vão nós tentamos agir como se nada tivesse acontecido?
— Chega um momento da vida, quando nos deparamos com a morte de alguém, que nós percebemos como nossa existência é frágil e finita — falou Dawn. — Alguns aprendem isso mais cedo do que outros, então começamos a nos preparar desde então. Por isso vivemos essa busca eterna de um sentido, talvez algo que nos eternize ou que ao menos marque as pessoas à nossa volta.
— É errado eu sentir saudade?
— Claro que não — disse Stanley, puxando-a para mais perto. — Saudade é uma coisa boa. Às vezes ainda me pego chorando pela morte do meu avô. E isso não é ruim. Significa que temos tantas coisas boas para lembrar, não? Eu guardo essas memórias como tesouros.
— É — Vivian encostou a cabeça nele. — Eu só queria ter tido a chance de me despedir dela...
A garota fechou os olhos, mas um clarão pareceu incomodá-la. Ao abri-los, viu a estranha forma de um Pokémon descer do céu, tinha uma coloração perolada rosa e uma longa cauda,  parecia brincar nas nuvens como se fossem feitas de algodão doce. Ao tocar o chão, a criatura assumiu uma forma humana. Era uma garota loira, de vestido florido e sorriso travesso. Vivian ficou de pé na mesma hora ao vê-la, a humana aproximou-se. Não encontrava palavras para expressar sua surpresa.
A garota luminosa em sua frente estendeu a mão, como se pedisse algo. Vivian percebeu que estivera segurando a presilha de Butterfree. Ela a entregou, e a garota a prendeu em seus cabelos dourados.
Ela apontou para o coração e começou a fazer uma sequência de gestos que Vivian não compreendia.
— Ela disse que sentiu muita saudade de você — falou Dawn, surpresa ao descobrir que faria uso da linguagem de sinais que aprendera na faculdade. — E está pedindo desculpas por partir repentinamente.
Vivian mordeu os lábios, mas não se aguentou; logo estava se debulhando em lágrimas de novo. Queria abraçá-la, mas não sabia se ela continuaria ali caso o fizesse.
— “Você é uma garota forte. Deve continuar seguindo em frente” — Dawn repetiu, atenta aos gestos. — “Eu te amo muito. Muito. Muito. Muito. E estou bem aqui, não precisa se preocupar. Sei como é difícil dizer adeus, parece fácil até chegar a sua vez. Mesmo que eu não volte para casa, quero que continue prezando sua família, pois é nela que está o seu lar.”
Vivian balançava a cabeça infinitas vezes, usando as mãos para limpar as lágrimas e cobrir o rosto. Jamais recusaria um último pedido de sua capitã. A garota luminosa desviou o olhar e encarou o horizonte.
— “Ninguém nunca sabe quando sua história vai terminar, mas... o que importa é a aventura de viver, não?” — Dawn fez uma pausa até entender o que a última frase significava e percebeu que estava chorando também. — “Adeus, amada e querida prima”.
Vivian correu para abraçá-la, mas assim que tocou seu rosto a garota luminosa se desfez em brilho e borboletas rosadas, de onde um Pokémon de aparência felina ergueu-se em direção do céu e desapareceu em uma nuvem colorida.
— Aquela era... Mew? — perguntou Stanley.
Vivian sorriu ao vê-la subir, ciente de que ela agora pertencia ao mundo, tal como sua prima Julia — uma indomável criatura, cheia de amor para oferecer e que vivera uma vida plena até o fim de seus dias.
Satisfeita com o encerramento daquela história, levou a mão ao bolso da jaqueta e percebeu que havia algo ali dentro. Quando o retirou, deparou-se com um pedaço de guardanapo amassado e seus olhos se iluminaram.
— Acho que acabei de descobrir uma forma de sairmos dessa ilha.

ii

De malas prontas, os três aguardavam o resgate no lugar marcado. Stanley reunira seus poucos pertences recuperados enquanto Dawn resumira três meses de pesquisa em uma pasta e um pendrive, havia inclusive estudos antigos sobre o DNA que ela encontrou em livros e pastas velhas — pretendia lê-los e decifrá-los com calma quando chegasse em casa. O encontro com o Mew levantara uma interessante teoria seria possível que a técnica Transform dava a possibilidade de um Pokémon se parecer com humanos? Será que os Pokémon lendários conseguiam ler pensamentos e interpretar sentimentos com um simples toque através do Synchronize? Como provaria o que havia acabado de ver?  Isso era conteúdo de sobra para começar a tese de seu TCC na Unisyno quando voltasse e tirar uma nota 10.
Vivian subira até o ponto mais alto da ilha. Por mais que os últimos dias tivessem sido frustrantes, podia dizer que sentiria muita falta daquela terra inóspita que a abraçara de forma tão inusitada, trazendo respostas para perguntas que a acompanhavam havia tanto tempo. Balançava as pernas contente do alto do penhasco quando ouviu alguém se aproximar.
— Stan, vamos tirar uma última foto? — perguntou Vivian.
Ela sentiu um estranho cheiro de fumo e, quando olhou para trás, havia um rapaz que ela buscou em sua memória algum resquício de lembrança que o envolvesse, apesar de não conseguir.
Imaginou que devia ter seus vinte e poucos anos, mas a expressão fatigada de quem viu muito o fazia parecer mais velho do que realmente era. A velha calça jeans surrada com diversos tipos de panos diferentes remendados dava àquele jovem uma aparência suja — sem falar na jaqueta vermelha que o vento litorâneo insistia em fazer ser notada a cicatriz de queimadura que ele carregava no corpo e se estendia até a altura do peito.
Com uma das mãos ele segurava o boné branco e vermelho, mas seus olhos não se desviavam do horizonte.
— Então, Mew foi até você por vontade própria — disse o rapaz. — Pensei que ela teria medo de se aproximar de humanos depois de tudo que aconteceu.
— Quem é você? — perguntou Vivian. — Achei que a ilha fosse deserta.
— E é — respondeu ele, se desfazendo do fumo enquanto descia a colina com as mãos no bolso. — Nada além de fantasmas.
Vivian desviou a atenção. Se estava conversando com fantasmas, então estava ficando louca mesmo. Quando se virou novamente só para ter certeza, deu de cara com Stanley.
— Pode me explicar como é que você tinha o telefone do Falkner no seu bolso?
— Ah, sobre isso... eu o enfrentei e conquistei sua insígnia no mesmo que dia você chegou em Johto, era uma das novidades que eu queria te contar e acabei me esquecendo. Ele me passou o telefone para trocarmos uma ideia, nada com segundas intenções, só achei que seria bom ter o contato de um policial e líder de ginásio, sabe? Mas quem diria que isso acabaria sendo útil na hora de chamar o resgate para uma ilha, hein?
— Calma, chuchu, não estou te julgando — brincou Stanley ao vê-la suar frio. — Não sei quem é esse Falkner, mas se você gosta dele, então deve ser gente boa. Eu não ligo de você ter outros amigos, não quero que fique presa dentro de casa me esperando.
— Uou, você é o melhor namorado mesmo. Valeu, mozão! — disse Vivian, roubando-lhe um beijão bem dado. — Qualquer hora fazemos uma festa a três que vai ser uma beleza.
— Boa! Uma batalha a três seria bem divertida — respondeu Stanley que não entendera o sentido da frase.
Quando os dois desceram a colina, Dawn aproveitava o tempo que tinha para fazer o último estudo do comportamento dos Lapras. A última recarga de bateria de seu celular tinha acabado e não havia espaço para mais nenhuma foto. Vivian esticou as mãos bem para o alto, como se pudesse tocar o sol lindo que fazia depois da tempestade da última noite.
— Sabe, tudo isso me fez pensar. A vida é tão curta, a gente nunca sabe quando nossa história pode terminar e se teremos mais chances de continuar a escrevê-la, o capítulo acaba mais cedo do que a gente espera e a temporada não dura tanto quanto gostaríamos. — Ela virou-se para Stanley e segurou sua mão. — Então, AME quem te AMA! Apesar das dificuldades do dia a dia, depois disso tudo vem a paz, e a gente só precisa encontrá-la.
A conversa se perdeu quando o vento forte anunciou a chegada de diversos Pokémon voadores. Um Pidgeot, um Skarmory e um Fearow grandes o bastante para carregar seus passageiros pousaram na costa, ofereciam até mesmo cintos de segurança e um espaço entre as pernas para levar suas bagagens. Falkner desceu da enorme ave para cumprimentar Vivian que corou ao vê-lo vestido com seu uniforme de polícia e a feição de galã de novela.
— Em que confusão você foi se meter, hein, ruivinha? — brincou Falkner.
— Você não tem noção da sorte que tive ao descobrir que seu número ainda estava no meu bolso, e não é só isso, você foi o único que recebeu meu sinal! — disse Vivian. — Como isso é possível?
Falkner tirou um aparelho Nextel do bolso e falou num tom brincalhão:
— Deve ser porque ele é meio velho.
Os viajantes se posicionaram nos pássaros que alçaram voo, deixando para trás as boas lembranças que a Ilha Pokémon lhes trouxera e todos os seus mistérios.

iii

Aquela viagem parecia ter acontecido há tanto tempo. Estava deitada em sua cama com as pernas no colo de Stanley que massageava seus pés. Com seu pijama confortável, cabelo lavado, bateria e barriga cheias, não havia muito que Vivian pudesse reclamar da casa de sua avó. Sentira falta das pelúcias de Spinarak e do conforto de sua cama, nem mesmo quando ficara anos viajando por Sinnoh imaginou que sentiria tanta falta de casa.
Havia acabado de terminar de montar seu mural de fotos e o colocado na parede em frente a sua escrivaninha. Imprimira tantas que fora difícil escolher apenas trinta, enchera os arredores de imãs personalizados e frases motivadoras; queria ter algo para se lembrar de cada fase da vida — da viagem com os Irmãos Wallers por Sinnoh, de suas brincadeiras com cada geração de primas em Azalea, das desventuras na Ilha Pokémon e as tantas experiências maravilhosas ao lado do namorado.
Stanley estava terminando de assistir um episódio inédito de “Steven Stone e o Universo das Pedras” quando Vivian espreguiçou-se e se esparramou de braços abertos na cama.
— Stan, eu percebi uma coisa... — Ela fez suspense até que ele perguntasse o que era.
— E?
— Sou muito grata e feliz pela vida, pelos amigos e pela família que tenho.
Stanley sorriu. Ainda era a mesma Vivian adorável de sempre.
De repente, foi como se uma lembrança que há muito a importunava a acertou em cheio, obrigando-a a sair correndo pela casa à procura de alguém.
— Ô, vó! — ela gritou do andar de cima. — Sabe onde tá aquela carta que chegou aqui semana passada?
Se foi você quem guardou, é você quem deve saber! — respondeu dona Katherine da cozinha.
Mas tava aqui no meu quarto!
Ah, aquela carta? Joguei fora. Seu quarto tava uma bagunça, menina.
Vivian voltou a esparramar-se no sofá. Estava frustrada, pois queria ter tido a chance de reler a carta para ter certeza de que não deixara escapar nenhum detalhe.
— Stan, eu estava aqui pensando com os meus botões... Quem será que era o tal de C?
— Do que você tá falando? — perguntou o rapaz.
— Do remetente que me enviou aquela carta estranha, sugerindo que eu fosse explorar a Ilha Pokémon. Ele afirmou que eu encontraria respostas para perguntas que há muito vinha fazendo, e eu realmente encontrei, mas como é que ele poderia ter tanta certeza disso?
— Deve ter sido a Cynthia. C de Cynthia. Dawn falou que foi ela que a mandou para lá, não?
— Na verdade ela disse que estava cumprindo estágio a mando do próprio Profº Carvalho. Será que foi ele?
— Você teria que ser muito especial para que um pesquisador do calibre dele decida entrar em contato — respondeu Stanley.
— Ah, tanto faz! Depois dessa loucura toda, acho que vou pra Kalos passar um tempinho com a minha prima Kath...
Vivian deu-se por satisfeita com a resposta de que tanto Cynthia quanto o Profº Carvalho poderiam ter sido os responsáveis pelo envio da carta. Mas, no final das contas, aquilo não importava mais. Nunca teria pensado que uma jornada atrás do desconhecido a faria descobrir algo mais sobre si própria, sobre histórias que havia deixado para trás e a maravilhosa sensação de mergulhar no mundo Pokémon esperando apenas ser surpreendida.
          Afinal, viver por si só é uma grande aventura, não?






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