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Cortinas de Prata

Cortinas de Prata
Capítulo Especial - Sinnoh x Johto

Dez e vinte e quatro da manhã. Era uma terça-feira. O dia mais longo da minha vida.
O despertador tocou sete da manhã, minha mãe e eu estávamos hospedadas em Mahogany para visitar o vô Pryce que estava de cama. Já fazia alguns meses que comecei a visitá-lo todos os dias, ele estava meio fraco, mamãe dizia que era bom os netos estarem por perto o máximo de tempo possível.
A casa estava silenciosa, mas, como de costume, minha avó Katherine já estava na cozinha preparando o café da manhã. Cumprimentei-a com um beijo no rosto e olhei para o quebra-cabeça inacabado na mesa de sala — três mil peças, esse ia demorar um bocado.
— Vivian, sobe aqui, depressa! — minha mãe chamou com urgência.
Subi as escadas às pressas e me deparei com meu avô deitado em sua cama de bruços. Ele respirava com dificuldade, escorria baba de sua boca, seus olhos mal conseguiam se abrir; minha mãe sempre soube como lidar com situações adversas, eu não. Ela tomou o celular na mão e ligou para um tio médico, precisava descobrir o que estava acontecendo. Fiquei em choque, há pouco menos de duas semanas o vô Pryce parecia tão bem, estava rindo de meus comentários e resmungando com seu mau humor costumeiro... Do dia para a noite, foi como se ele tivesse envelhecido dez anos, seus cabelos sempre bem penteados estavam todos desgrenhados, a cama fedia a mijo, sua comida permanecia intocada na mesinha de canto.
Minha avó entrou no quarto trazendo um pratinho com pão e mortadela frito. Parecia que nem ela havia notado a súbita piora do meu avô.
Após receber as instruções do meu tio, mamãe começou a correr pela casa feita louca. Lembro dela ter me dito no dia seguinte: “Eu pedi pro universo me mandar alguém, qualquer pessoa, porque eu não conseguiria fazer aquilo sozinha”. Não demorou muito para que minha tia Neusa de Azalea chegasse — como um sinal divino —, e ela percebeu que a situação requeria urgência.
Deixei o quarto, porque eu não estava com cabeça para aquilo. Eu sabia que ia acontecer. Não quis negar, pois sabia das condições e da doença dele, mas encontrei dificuldades em compreender como a vida seria dali em diante. Subi e desci a escada mais vezes do que deveria, eu só não queria estar lá dentro, ficava repetindo a mim mesma: “Por favor, por favor, não deixa eu estar perto quando acontecer”. Observei cada quadro na estante, o meu favorito era um do vô bem novo carregando sua Swinub gorducha no colo, a primeira captura dele; cada objeto velho que trazia tantas histórias que eu ainda não conhecia; o tempo estava acabando, e por um breve instante fui assolada com a ideia de que não tinha aproveitado como deveria.
Minha mãe passou às pressas pelo corredor com os cobertores sujos. Enquanto ela estava ocupada, fui até o quarto e me sentei do lado do meu avô. Eu não sabia se ele estava me ouvindo, mas também não encontrei nenhuma palavra que oferecesse conforto, por isso só segurei sua mão, o que é curioso, não éramos de nos encostar muito. Fiquei acariciando-o de leve, como se tivesse a esperança de que minha presença o confortasse.
— Pai, pai. Você quer ir ao médico? — minha mãe falou com a voz solene. Era surpreendente o quão tranquila ela aparentava, dada a situação.
Meu vô mexeu a cabeça devagar — um sinal de que ele estava sim nos escutando —, mas fez que não com a cabeça. Decidimos deixá-lo tranquilo, enquanto minha mãe fazia conforme meu tio médico indicava pelo telefone.
Foi surpreendente como a notícia correu rápido. Em menos de duas horas, recebemos a visita de pelo menos seis parentes diferentes. Todos ajudavam com o que podiam, fiquei mais tranquila com a presença deles porque, sinceramente, eu não estava em condições de consolar a minha avó. Dona Katherine sempre foi uma mulher muito forte, mesmo que os dois nem fossem mais casados, quando ele começou a piorar, ela se mudou para Mahogany para cuidar do meu avô todo santo dia — preparava café, almoço e janta, aguentava os xingamentos (até porque gente velha é assim, gosta de xingar), limpava a casa, trocava os lençóis e no dia seguinte estava pronta para repetir a dose.
Eu estava sentada na varanda quando ouvi minha tia cochichar para minha mãe:
— Chegou a hora.
Respirei fundo e fechei os olhos. É, chegou a hora.
Quando subi para o quarto, me deparei com o corpo na cama. Vi minha avó sentada do ladinho dele, acariciando seu cabelo devagar. Eu digo que a mulher é forte, porque ela derramou uma lágrima, só uma. O homem da vida dela havia acabado de falecer, mas ela não fez estardalhaço, não perdeu o controle, nem demonstrou — era como se ela compreendesse que, frágeis como somos, um dia a morte chega para todos. Eu dei um abraço forte na minha mãe que também se permitiu chorar um pouquinho, mas havia muito a que se pensar: Onde seria o enterro? Como fazer o anúncio? O que fazer com o corpo? Qual o melhor velório? Quem ia assumir o ginásio?
É, morrer dá um trabalhão. O que mais doeu nessa primeira parte do dia foi ver o irmão mais novo do vô chegar. Ele é meio surdo, tadinho, e foi a última pessoa a conversar com ele em vida. Minha mãe disse que o vô estendeu o braço e sorriu, como se só o estivesse esperando chegar para enfim descansar. Eles eram em cinco irmãos, agora só sobrava um. Eu sou filha única, mas, cacete, deve doer ver todo mundo indo embora até só sobrar você.
— Vivian, querida, pode abrir a janela? — pediu minha avó.
Eu abri os vidros e, nossa. Que dia lindo pra morrer. Sério, a frase pode parecer sarcástica, mas estava um dia incrível mesmo, nada daquela chuva ralinha dos filmes e paleta de cores cinzenta que os cineastas costumam usar quando querem passar um clima mais tenso; estava fresco e ensolarado. Se eu tivesse que escolher uma forma de morrer, queria que fosse assim. Meu vô não queria que seus últimos momentos fossem enclausurados em um hospital, talvez entubado, lutando para sobreviver mesmo diante da derrota iminente, com gente estranha correndo no corredor e uma máquina apitando do lado; ele estava cercado das pessoas que amava, no conforto de sua própria cama e na segurança de seu lar.
A notícia da morte correu ainda mais depressa, logo começou a vir parente de tudo quanto é parte. A primeira a chegar foi a prima Katy, que por sorte havia acabado de voltar de Kalos para passar umas férias; ela me abraçou acanhada, meio que sem saber o que fazer, porque sabia o quanto eu era apegada com meu avô.
— Ei, Vi... como é que está?
— Ah, eu tô bem — respondi com sinceridade.
Nós nos sentamos na beirada da cama, o corpo do meu avô já havia sido retirado. Na mesinha de canto, vi o prato que minha avó havia preparado para ele — sua última refeição.
— Ele não comeu o pão com mortadela — falei.
E, pela primeira vez no dia, me permiti chorar, pois percebi que ele nunca mais ia tomar café da manhã comigo.
Comecei a mastigar o pão mesmo sem fome, eu não ia permitir que o último café da manhã dele fosse pro lixo. Céus, minha cabeça estava uma ameba. Katy me abraçou, e eu lembrei que o dia ainda nem havia começado.
O que veio a seguir foi uma sucessão de cenas esquisitas. Muita espera e correria, é como falei, morrer não é fácil. Mamãe precisou ser muito forte, perdi um vô, mas ela perdeu um PAI. Quando alguém morre, tem tanta burocracia envolvida que você pode ter certeza que pelo menos um mês inteiro você não vai ter tranquilidade; é caixão, cemitério, contas a acertar, termos e contratos, aposentadoria, muita coisa para passar adiante. Enquanto os adultos discutiam, eu me sentei na cadeira de rodas do vovô e comecei a ir para frente e para trás. Quis experimentar um pouco a sensação, saber como ele se sentia, eu nunca havia percebido como era desconfortável, por que ele nunca me contou? Quando uma tia me viu ali sentada, ela ficou em choque. Não sei se pensava que eu estava desonrando a memória dele, mas a cadeira agora era minha, pô.
Recebemos uma ligação por chamada de vídeo, e esta deve ter sido a parte mais doida do dia. Adivinha quem era? Irmão da minha mãe, um cara que se mudou para uma região distante para virar Mestre Pokémon e nunca deu satisfação a ninguém. Fazia uns quinze anos que eu não o via, ele nem era considerado parte da família; tinha sua própria vida longe de nós e, em todo esse tempo, ele nunca ligou para saber como estávamos.
“Como é que ele está?”, escutei a voz abafada do outro lado.
— Ele já morreu... — minha mãe respondeu.
“Posso vê-lo?”
Sério? Sério que ele queria ver um corpo morto? Por que ele não veio visitar quando enviamos uma carta, dizendo que a saúde do vô tinha piorado? Por que ele nunca visitou o pai nos últimos quarenta anos? Ou melhor, por que ele não volta AGORA? Seria um ótimo momento para se redimir, rever todos nós, contar sobre sua vida nova e depois voltar, ninguém estava pedindo para ele ficar para sempre. Minha mãe levou o celular até o quarto e mostrou o corpo lá parado, sei lá, vai que ele achava que era brincadeira.
“Tudo bem. Tchau”.
E essa foi a última vez que ouvi falar do meu tio. Mamãe já nem liga mais, ela diz que não devemos julgar a dor dos outros, mas... “Posso ver o corpo dele?” Fala sério, puta que pariu.

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Aqui começamos a segunda parte desse longo dia, vamos dar um pulo para o velório, porque aparece muita gente famosa e vocês vão gostar. Sabe, uma das maiores doenças que assola os idosos é a depressão — eles acham que já não são mais úteis para ninguém, um peso no mundo; palavras de amor e gestos de carinho se tornam cada vez mais raros e a fragilidade diante do que um dia foram piora ainda mais a situação. Meu avô fechou o ginásio há alguns anos, e isso acabou com ele. Batalhar era sua vida, mas é engraçado pensar que ele também tinha hobbies. Lembro quando ele me contava sobre a guerra, e me presenteou com uma medalha de sua participação! Desde então, comecei a chamá-lo de “capitão” em reconhecimento ao seu cargo como líder de ginásio. Pryce gostava também de pescar, atividades que seus colegas da Liga desconheciam. Na verdade, tem muita coisa sobre ele que nem eu sei.
Como ele morreu bem cedinho, o corpo só ficou pronto lá por volta do meio dia e o cemitério só ficaria aberto até as quatro. Minha mãe decidiu adiar o enterro para a manhã seguinte, dessa forma todo mundo que pegou um avião ou se juntou ao seu Pokémon voador para comparecer ao enterro teria tempo de chegar.
Só que isso significava passar a madrugada inteira ali, o que se revelou como uma experiência bem louca por si só.
Eu não me vesti de preto naquele dia, não dá pra imaginar uma Vivian de preto. Eu até que estava bem, me recuperando, achava que o pior já tinha passado.
— Vi, acha que pode postar uma mensagem no seu perfil, avisando todos do ocorrido? — perguntou minha mãe.
— Sim, claro — respondi. Ela não queria nada muito elaborado, só pediu para anotar o endereço e o horário do velório, para as pessoas se programarem. Passei uns trinta minutos pensando em como escrever até conseguir algo satisfatório, e enfim, postado.
Meu texto atingiu umas duzentas e cinquenta curtidas e mais de cem comentários. Uau. Nem minhas fotos de biquíni chegam a tanto.
Quando chegamos ao velório, vi gente de tudo quanto é canto, reencontrei amigos que não via há anos e recebi a visita de pessoas que eu menos esperava. O pessoal da Liga Pokémon garantiu o quarto mais chique, e nas primeiras horas da manhã não demorou para lotar; todos os líderes de ginásio da região de Johto compareceram, cada um trazendo uma mensagem motivadora ao seu próprio estilo.
— Que linda declaração de amor, Virginia! — encorajou Chuck, contendo uma ou duas lágrimas. Nem fiz questão de corrigir meu nome. — Ele foi um lutador, um verdadeiro capitão!
— Sei como é perder alguém querido, minhas orações estarão com você e toda sua família — falou Jasmine.
— Meus sentimentos — disse Clair.
— Seu avô foi um verdadeiro amigo de muitas histórias, ele era de uma sabedoria infinita. Que encontre a paz — continuou Morty. — Saiba que a morte nada mais é do que uma jornada que todos nós teremos que tomar.
Se eu disser que não sorri nesse dia, eu estaria mentindo. Que surpresa foi a minha ao me deparar com Ethan e Amy juntos; ele sem o boné, todo tímido e comovido; e ela com um par de óculos escuros maiores que o rosto para esconder os olhos inchados, sem perder a pose. Amy me abraçou forte, não perdi a oportunidade para brincar e dizer: “Tu ainda me deve uma bike”. Nós duas rimos muito, naquela hora eu estava realmente feliz por vê-los.
Junto de Ethan, era claro que tinha de vir todo o seu fã clube. Muitos velhinhos ali conheciam Pryce, alguns haviam estudado com ele quando pequenos, outros eram colegas de trabalho ou apenas espectadores que tinham tido a chance de assistir a uma das tantas batalhas incríveis que ele travara.
Um senhorzinho que eu não conhecia o nome chegou para mim e falou:
— Vivi, tenho sessenta e um anos e amaria ter uma neta como você. Um dia, quando eu partir, gostaria de receber uma homenagem como aquela que você escreveu. Esteja onde estiver, tenho certeza que ele está muito orgulhoso de ter convivido com você, que Arceus possa consolar os corações de todos que amam seu querido avô.
Sabe, ouvir aquilo de um estranho me deixou muito feliz. Eu, uma neta exemplar? Nunca fiz nada para merecer tal reconhecimento, só postei alguns pensamentos em uma rede social, mas parecia que todo mundo tinha lido. O velório estava lotado, meu avô estaria surpreso! Ele amava receber atenção, mas me entristece pensar que não está mais aqui para ver quanta gente se importava com ele. A vida é cheia dessas, quantas vezes nós só arranjamos tempo para visitar alguém depois de que ela já morreu? Sabe aquelas coroas de flores? Ele recebeu sete, todas lindas e bem decoradas, quase não tinha mais espaço do lado do caixão. E as visitas não paravam de chegar, o ambiente era preenchido por aquele burburinho baixo, uma risada ocasional irrompendo pelo aposento, uma fungada ou outra para esconder a choradeira.
A cena que mais doeu em mim — na verdade, em todo mundo que estava presente — foi quando chegou o irmão mais novo do meu vô. Como mencionei, ele é meio surdo. Eu o vi se aproximar do caixão, mas acho que não tinha noção de estar falando alto demais.
— Meu irmão! Meu irmão! Agora eu estou sozinho, e quem cuidará de mim?
Ele foi guiado por uma das netas, seu corpo tremendo e o nariz fungando, e nós ainda podíamos ouvi-lo repetir: “Agora só sobrou eu... me sinto tão só. Por que vocês me deixaram?”
Stanley, meu namorado, foi o próximo a chegar, quase comecei a chorar só de vê-lo na porta. Ele ficou ao meu lado até o fim, ouvindo, falando quando necessário. Sua mera presença me confortava, foi muito importante tê-lo por perto. Eu não estava esperando ver tanta gente vinda de Sinnoh, era uma viagem longa, até hoje não sei como eles fizeram para chegar tão rápido. De noitinha, Luke e Lukas chegaram com sua família, fiquei de boca aberta ao saber que até o pai deles, o famoso ex-campeão, Walter Wallers, também estava junto.
Lukas, meigo como sempre, quase me arrancou mais lágrimas. Luke, por outro lado, me fez rir quando eu achava que meu mundo não tinha mais cor.
— Vivian, você é uma das primeiras e únicas pessoas nesse mundo que tiveram a proeza de fazer meu pai chorar — disse Lukas. — Sério, quando ele leu aquele seu texto, mamãe me contou que o viu chorando bem baixinho, escondido no quarto.
Conversar com aqueles dois irmãos no meio madrugada me deu mais energia para aguentar as difíceis horas que se seguiram — afinal, o enterro só poderia ser feito às oito.
— Ei, Luke, acha que pode me emprestar os óculos escuros do seu Garchomp? — perguntei.
— Claro, por quê?
— Sei lá, só pra me prevenir. Depois eu devolvo.
Meus amigos de Sinnoh não pararam de chegar, acho que não consegui esconder minha cara de terror ao me deparar com Marley, minha rival de longa data dos tempos do Grande Festival. Ela só veste preto, naturalmente, então não estava muito diferente do que eu estava acostumada a vê-la, mas quando me abraçou, meu peito se apertou ao perceber que ela também chorava.
— Você precisa ser forte agora — disse Marley.
Dawn e Cynthia foram as últimas a chegar, quase às três da manhã, quando fazia mais frio. Em outros tempos, eu diria que aquele encontro teria sido muito feliz, meus amigos de jornada, todos reunidos. Quando eles souberam que eu passaria a madrugada toda no velório, eles prontamente se ofereceram para ficar lá comigo. E como eu poderia recusar? As horas passaram mais depressa na companhia deles, tínhamos tanto a discutir.
Quando o dia já ia amanhecendo, a maioria já havia adormecido como puderam nas desconfortáveis poltronas. Melyssa nos trouxera um bolo, e Cynthia saiu para comprar o café da manhã. Eu estava deitada no colo de Stanley, com os olhos pregados de tanto sono, quando senti que queria compartilhar uma experiência com ele.
— Eu me lembro do último ano novo que comemorei com meu avô.
— E o que vocês fizeram? — perguntou Stan.
— Quando bateu meia noite, ele começou a chorar. Eu fiquei sem reação, afinal, estava todo mundo comemorando o começo de um novo ciclo, se abraçando e brindando, enquanto eu fiquei lá parada do lado dele na cadeira de rodas, sem conseguir abraçá-lo.
— Mas você estava ao lado dele, Vi. E eu garanto que isso o deixava contente.
— Acho que ele sabia que havia chegado a hora. Gosto de dizer a mim mesma que, nesse momento, um anjinho chegou bem perto dele e falou: “Sr. Pryce, esse é seu último ano aqui na Terra, tá bem? Aproveite o máximo que puder”.
Oito horas da manhã, o céu clareou e o dia continuava lindo.
Olhei uma última vez para o rosto de meu avô antes de fecharem o caixão.
— Quem irá carregá-lo? — ouvi Dawn perguntar baixinho.
São necessárias seis pessoas para carregarem o caixão, é um percurso curto, mas muito significativo. Eu me enchi de orgulho ao saber que na frente iriam o tio Walter e o Lance, que chegara havia pouco de uma viagem de emergência, só para o enterro; os outros três foram o Chuck, Falkner e Ethan; normalmente eles preferem que apenas os homens façam isso, mas qual foi a minha surpresa ao saber que eu seria a última convidada.
Foram os doze metros mais longos da minha vida.
Fizemos a caminhada em silêncio até o cemitério, fui subindo de mãos dadas com Marley e Stanley de cada lado. Mesmo que a maioria das pessoas que compareçam no velório não fique até a hora do enterro, ainda devia haver umas sessenta pessoas, o suficiente para fechar a rua. Minha mãe sempre disse que velório não é lugar para a criança, por isso nenhuma das minhas primas de Azalea mais novas compareceram — o que foi um alívio, eu não teria suportado ver nenhuma delas chorando.
Nossa longa jornada estava quase chegando ao fim. Na pequena catedral, tivemos nossa última despedida do vovô, de um jeito mais particular. Fazia anos que eu não entrava em um cemitério, mas desde aquele dia eu tenho ido todo mês levar algumas flores, acender velas. Meu pai costumava dizer que não gostava de cemitérios, porque o que ele tinha para dizer aos vivos já havia sido dito, mas eu gosto dessa ideia de prestar as devidas homenagens aos mortos. É um ambiente sagrado, e muito belo se você souber reparar.
Os adultos levaram um tempão decidindo se o vovô seria enterrado do lado Azalea da família ou como um membro honorário da Liga, mas foi minha avó quem deu a palavra final:
— Ele sempre quis que fôssemos enterrados juntos — disse Katherine.
O túmulo da nossa família é bem grande, espero que o vovô goste. Eles destamparam o mármore e, enquanto dois homens desciam o caixão, nós ficamos lá, olhando.
Eu vi Lance tirar um papelzinho do bolso do paletó. Ninguém tinha me contado que ele havia preparado um discurso, imaginei que seria incrível um homem respeitado como ele dar as últimas palavras ao falecido. Com seu vozeirão, Lance começou a falar:
— Ontem a noite, me pediram para dizer algo bonito na hora do enterro, mas para ser sincero, eu não encontrei nada que chegasse nem aos pés dessas palavras tão lindas e honestas que eu lerei aqui para vocês.
Os homens continuavam cavando. Lance abriu o papel e começou a ler:
— “Hoje uma garota se despede de seu capitão”.
Ah. É o meu texto. Coloquei os óculos escuros, porque ia começar a chover.

“Hoje uma garota se despede de seu capitão. Meu avô encontrou a calmaria depois da tempestade. Fico a pensar em todas as lembranças dessa longa viagem, quando o conheci ele já tinha os cabelos branquinhos e, apesar de eu ter tido a chance de acompanhá-lo por um breve período de sua vida, sinto muito orgulho deste velho capitão — das caras engraçadas que ele fazia e dos momentos de lazer com quebra-cabeças, do eterno carinho pela minha avó que me faz acreditar no amor.
Oitenta e cinco anos de aventuras! Lembro quando ele me deu uma medalha que diz ter ganhado nos seus dezoito, de volta aos tempos da guerra. Será que ele lutou bravamente? Ele era um líder, um verdadeiro treinador; mas também um pai dedicado, um avô brincalhão, um amigo gentil. Ele amava andar com sua Swinub gordinha debaixo do braço, mas ela se foi antes. Hoje cedo ele também descansou em sua cama confortável e, veja só, estava um dia lindo! Muito bom para pescar, uma de suas atividades favoritas. Nós deveríamos ter pescado mais, só que eu sempre morri de nojo de pegar nos peixes, desculpe... Eu coloquei uma roupa bem bonita hoje, porque ele gostava de me ver chique, prendi a medalha no peito para me lembrar de todas suas conquistas e vitórias até aqui, mesmo as que conheci apenas através de breves histórias.
Hoje, as cortinas de prata abrem caminho para praias brancas. Independente da crença ou religião, espero que lá no futuro possamos nos encontrar de novo num barquinho, onde meu bom e velho capitão estará me esperando com sua Swinub gordinha do lado. Ele vai me olhar com aquele sorriso tão raro e espontâneo, do jeitinho como lembro, e vai dizer:
— Vivian, que bom que está aqui comigo!”
Saudades eternas, vovô. Me espere.



Em homenagem à Teruo Ikeoka.
14/10/1931 ~ 28/03/2017



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