Posted by : CanasOminous Aug 19, 2022

 

Pokémon P.O.V. [Point of View, em homenagem aos velhos tempos!]

 

O Garchomp desviou-se bem a tempo de escapar de um golpe letal da Pidgeot que desceu com um rasante feito um torpedo. Suas bicadas feriam com a força penetrante de uma lança, e suas asas cortavam o próprio vento como se fossem lâminas de aço. Nenhuma tentativa de usar o Stone Edge funcionara, e só lhe restava energia para uma última investida.

A Pidgeot alçou voo e fez uma parábola no ar, os olhos de águia agora fixos em seu adversário. Aerus preparou-se para atingi-la em uma última tentativa desesperada. Quando desceu com um Brave Bird, mirou a ponte de pedras e errou por um triz, sendo atingido no ombro e arremessado no chão com a colisão. A Pidgeot, entretanto, não se deu conta de um tiro vindo de fora da batalha que a atingiu na asa direita que começou a fumegar e queimar, comprometendo seu voo.

Mayday! Mayday! A Pidgeot fez a curva a tempo de amenizar o impacto, mas acabou por estrebuchar-se no chão e por pouco não quebrar uma das asas no processo. Se não fosse uma aviadora tão experiente, poderia ter dado fim à sua carreira ali mesmo.

Quem foi o filho de uma meretriz que se meteu no meio da nossa batalha?! Aerus berrou furioso, procurando o culpado pelo disparo.

— Não olha pra mim. Meus tiros não são de fogo — Mikau respondeu logo atrás como quem só quer debochar.

Havia um exército de Heatran aproximando-se da montanha, emergindo dos rios de lava e infestando as paredes até que estivessem cobertas. Um deles fez um disparo contra o Garchomp que se defendeu com suas lâminas que imediatamente começaram a derreter dado o calor absurdo do magma.

— Parece que estamos encurralados — disse General. O Dusknoir envolveu sua amada, Froslass, ao redor dos braços, pronto para protegê-la de qualquer ataque.

— Eu posso tentar conter o calor, mas são muitos — respondeu Glaciallis.

— Esse era um bom momento para a guilda estar completa. Cadê o resto do pessoal? — indagou Sophie, a Gardevoir.

— Teremos de nos virar com as armas que temos em mãos — acrescentou Chaud, o Bastiodon, com seu escudo pronto para repelir.

O grupo de seis Pokémon formou um círculo conforme os Heatran furiosos os cercavam, fechando cada vez mais o cerco. As criaturas metálicas pareciam dispostas a ferir e até matar os invasores que haviam profanado seu templo sagrado. Não que eles tivessem culpa, cabia a uma guilda de Pokémon obedecer às ordens de seu treinador, e no momento sua prioridade era escapar dali com vida.

— Alguém coloca aí o tema dos Vingadores pra bater a inspiração? — caçoou Aerus.

— Eu nem sei o que é isso, mas se tem vingança e sexo, então eu gosto — respondeu Mikau com seus tiros certeiros prontos para atingir o alvo.

O primeiro Heatran deu um salto na direção do grupo, e foi imediatamente atingido por um Hydro Pump na cabeça. À esquerda de Mikau, Glaciallis congelava três deles na medida em que General e Chaud montavam uma barreira ao seu redor. Sophie previu através de seu Future Sight que cinco deles cairiam, e na sequência uma explosão psíquica os mandou pelos ares.

Aerus estava na linha de frente do combate quando percebeu que seus inimigos formaram uma fileira e abriram espaço para seu líder. Um Heatran maior do que qualquer outro aproximou-se suntuoso, armado até a cabeça em ferro e metal e cuja espada flamejante fumegava em uma das mãos.

— Você deve ser o alfa — presumiu o Garchomp.

O cavaleiro não disse palavra alguma, mas a espada zuniu em sua mão pronta para o embate. Aerus defendeu-se da primeira investida, buscando a melhor alternativa de enfrentá-lo sem utilizar seu melhor golpe. O Earthquake era uma técnica perigosa. Com todos seus companheiros por perto, o golpe acabaria por atingi-los e até comprometer a estrutura da montanha. O cavaleiro não estava para brincadeira, continuou a avançar com ferocidade, dominado por uma fúria avassaladora. Existia certa sutileza na forma como sua espada era empunhada, deixando um rastro de fagulhas e brilho incandescente que cortava o ar.

Aerus ativou suas lâminas e usou o Dragon Claw bem no peito do cavaleiro, fincando-as na armadura de aço. Para o seu azar, elas ficaram presas, o que deu a abertura para que seu oponente lhe devolvesse uma cabeçada que o fez enxergar estrelas.

Sophie correu para socorrê-lo, dando cobertura através do Heal Pulse para que recuperasse a energia. Mikau estava começando a ficar sem munição, e os Heatran inferiores continuavam a proteger seu alfa.

O grupo viu-se encurralado mais uma vez, pressionados contra o abismo de lava sobre eles. Os Fire Tales podiam ter muitas histórias para compartilhar ao redor de uma fogueira quente, mas encarar todo um exército da guilda vulcânica era suicídio.

O cavaleiro marchava com passos pesados, aguardando a rendição. Agarrou Aerus pela garganta e o ergueu à sua altura. Só se enxergava um par de olhos alaranjados por baixo do elmo que protegia sua cabeça como uma coroa. Sua voz gutural espalhava terror e insegurança:

— Vão se arrepender de ter pisado em solo sagrado — disse o cavaleiro.

— É que tenho o costume de entrar sem ser convidado pra festa — murmurou Aerus que nunca perdia a chance de provocar alguém.

A manopla de ferro começou a pressioná-lo com mais força, mas um tiro o atingiu com precisão no ombro e o fez soltar com um grito de dor. Mikau estava sem munição, então quem poderia ter sido?

Na abertura mais distante da caverna, o Gyarados de Amy certificou-se de que o próximo seria na cabeça, pois seu título como um dos maiores atiradores de Kanto o presidia. A guilda de Pidgeot veio ao seu resgate, trazendo consigo o Primeape campeão de luta dos pesos médios, a Sneasel que atuava nas sombras como assassina de aluguel, o Venomoth cujos venenos letais derrubavam reinos e o Gengar Shiny que se limitava a rir e caçoar da situação.

As duas guildas uniram forças para controlar a batalha, combatendo um a um os soldados vulcânicos que protegiam o templo até que não sobrasse nenhum. O Cavaleiro de Fogo se reergueu, e sua espada ardeu como um farol na escuridão. Aerus estava pronto para seu embate final quando percebeu que o som da batalha cessou, e nenhum de seus companheiros lutava mais.

Olhou para trás por curiosidade e avistou uma única mulher erguer-se contra todos eles. Era uma descendente da tribo ancestral dos Garchomp, alta, esguia e de porte invejável como uma rainha de outrora. O mero vislumbre de alguém tão importante capaz de emanar uma aura esmagadora como aquela o fez pensar em Titânia, e seu coração se encheu de saudade. General e Chaud fizeram uma mesura ao reconhecerem a ilustríssima figura, e até mesmo Mikau intimidou-se diante de sua presença. Aerus precisou retirar seus óculos escuros assim que ela passou ao seu lado.

— V-você... — Seus lábios tremiam ao dizer seu nome.

— Kayla. O prazer é todo seu. Vim em nome de minha mestra, Cynthia, para colocar um fim em toda essa guerra desnecessária — respondeu a Garchomp, convicta. — Se continuarem lutando, ambos os lados sofrerão casualidades. E se alguém ainda quiser lutar... então venha. Eu serei sua adversária.

Um a um, os soldados Heatran largaram suas espadas e se renderam. Mesmo os Fire Tales reconheceram que a mera presença dela era o bastante para fazer qualquer um abaixar as armas. Porém, o Cavaleiro de Fogo não se deu por intimidado, e com velocidade impressionante ergueu sua espada flamejante contra ela. Kayla limitou-se a erguer sua lâmina, e sem que qualquer um pudesse acompanhar seu movimento, o inimigo foi atingido tantas vezes que sua armadura inteira se rompeu, sendo completamente retalhada.

Tendo sido derrotado em combate, todos puderam ver o verdadeiro rosto do cavaleiro. Era uma mulher de cabelos vermelhos e olhos incansáveis, pingando suor após a exaustiva batalha. Sua visão ficou turva, as pernas cederam e seu corpo fraquejou para a direita, mas Aerus lhe deu apoio para que continuasse de pé.

— Um líder não pode cair na frente de seus homens — disse o Garchomp.

A cavaleira sorriu e concordou, passando a admirá-lo ainda mais.

— Você é mesmo tudo aquilo que falam e mais um pouco.

— Pra conhecer mais de mim, só convivendo com esse bando de loucos que chamo de família — brincou Aerus, deixando no ar um convite indireto para que ela se juntasse aos Fire Tales.

Com a situação controlada, sua atenção voltou-se à Garchomp, uma das primeiras a consagrar-se campeã no Torneio das Guildas e provavelmente a figura mais forte e influente em todo o reino. Aerus aproximou-se dela de queixo erguido, e quem não o conhecia imaginou que ali aconteceria um embate entre alfas para disputar quem era o mais poderoso; embora seus amigos de longa data da guilda soubessem bem o que ele estava para trazer.

— Eu não acredito que to te conhecendo! Eu sou seu maior fã! — disse Aerus explodindo de empolgação como uma criancinha que encontra seu ídolo pela primeira vez. — Mano do céu, esse é o dia mais feliz da minha vida! Digo, talvez seja o segundo, porque antes vem o nascimento da minha filha; mas posso dizer com certeza que conhecer você estava na minha listinha!

— Encantada — correspondeu Kayla, acostumada com os fãs.

— Será que... você podia assinar o meu tanquinho?

— Aerus, essa não é uma boa ideia... — General estava para acrescentar o fato de que Titânia não iria gostar nem um pouco de ver o nome de outra mulher escrito na barriga de seu macho, mas Mikau fez menção que ele ficasse quieto só para ver o circo pegar fogo.

— Vocês da Fire Tales são mesmo uma figura! — brincou Kayla.

— Quer dizer que a senhorita já ouviu falar sobre nós? — perguntou Chaud.

— Se ouvi? Garoto, vocês me inspiraram a voltar. Se tivermos a chance, eu adoraria poder enfrentá-los no Torneio de Guildas algum dia. Sem fatalidades dessa vez, claro.

— Pode deixar que eu me comprometo a reunir o bando! — disse Aerus contente. — Nós não paramos de treinar desde que nos consagramos campeões aquele ano. Olhando para trás, passou mesmo um tempão... E quer saber? Eu senti saudade de tudo isso. Estamos ansiosos para voltar!

 

i

 

Luke arremessou a Dusk Ball que acertou com precisão a Heatran fêmea que acabara de ser derrotada. A pokébola tremeluziu três vezes antes de confirmar a captura do Lendário Pokémon. As demais criaturas vulcânicas retornaram para dentro de seus buracos e rios de magma, escondendo-se assustados quando perceberam que a situação se agravara.

— Acho que nossa batalha meio que fugiu do controle — mencionou Amy.

Luke olhou para o alto e percebeu que a montanha estava, de fato, ruindo.

— É. Deu ruim.

— Está acontecendo. Finalmente meu plano está tomando forma — murmurou o Profº Charon, escondido atrás de uma pedra.

Através da interferência da Magma Stone e o caos gerado pelos Heatran, o vulcão adormecido sob a Stark Mountain estava prestes a explodir. Amy retornou seus Pokémon, convicta de que agora tinha um objetivo muito mais importante para resolver do que limpar a sujeira deixada pelos Rockets. Muito distante dali, Luke pôde avistar Cynthia acenando com um dos braços. Ela estava em uma área elevada no interior da montanha, e enviara sua Garchomp para auxiliar na batalha. Junto dela estava Dawn, em segurança, o que aquietou o coração de Luke e o permitiu concentrar-se em outros problemas.

— Temos que impedir esse vulcão de entrar em erupção, ou colocaremos em risco a vida de milhares de pessoas que vivem nessa ilha — Luke contou para Amy, buscando algum conselho.

A moça por sua vez não tardou a perceber que alguém se escondia ali perto. Quando Charon tentou escapar, ela deu um pisão em seu jaleco e o fez tropeçar e ir de cara ao chão.

— Você é quem está por trás disso tudo, não é? Diga-me agora o que temos de fazer para reverter essa situação — Amy o confrontou.

— Nada. Vocês não precisam fazer absolutamente nada — retrucou Charon. — Isso não é irônico?

— O que está tentando insinuar? — indagou o rapaz.

— Luke Wallers — Charon dirigiu-se a ele. — Você não percebe como sua vida é abençoada? Todas as coisas se ajeitam para você e seu irmão, mesmo que através de soluções impossíveis como um tremendo deus ex-machina. Você sempre tem a certeza de que tudo vai terminar bem, não é? É como se vocês fossem abençoados... pelas divindades.

Uma enorme rocha desgrudou-se do teto e por pouco não os atingiu. Luke começou a juntar as peças e só conseguiu pensar em seu irmão. Lukas namorava uma deusa. A mulher que eles conheciam como Paula não passava do disfarce de uma entidade divina capaz de controlar as dimensões do espaço, alterando a realidade a bel prazer. Seu nome verdadeiro era Pearlutina, e era inegável o quanto sua proteção afetara sua jornada. Estaria aquele tempo todo apostando tão alto porque o destino estava do seu lado?

— Está insinuando que tudo que eu conquistei foi mera sorte? — questionou Luke furioso, puxando o velho cientista pela gola.

— Eu não chamaria de sorte — ponderou Charon. — Mas é inegável que alguém quis que você chegasse até aqui, não acha?

Lava começou a ser expelida, e o calor estava prestes a se tornar insuportável. Amy chamou por Cosmo e Star e ordenou que eles ajudassem na evacuação de quem quer que ainda estivesse preso dentro do laboratório dos Galactic. Enquanto se preparavam para a fuga, a Comandante Mars deu as caras, mas acabou por encontrar-se com quem não gostaria.

— Tia Martha? — Luke esboçou surpresa ao vê-la. — Por onde você esteve? Estávamos todos procurando por você. Mamãe não tem notícias sua há meses...

— E-eu... — A Comandante pareceu acuada, e não quis lhe dar satisfações. — Me perdoe.

Martha correu na direção oposta, abandonando seu compromisso com os Galactics e também a sua segurança. Luke estava para ir atrás dela quando Amy o impediu.

— O que você tá fazendo?! Ela é a minha tia!

— Deixa que eu resolvo — retrucou Amy. — Ela está passando por algo que nenhum de vocês entenderia. Eu prometo que irei trazê-la de volta. Concentre-se em ajudar as pessoas a evacuarem a montanha em segurança.

Ainda que não a conhecesse tão bem, Luke sabia que podia confiar em uma treinadora tão forte e capacitada. Deixou a caverna às pressas enquanto Amy corria em direção do perigo atrás de Martha, cada vez mais fundo no coração da montanha.

Martha estava surda para tudo que se movesse. Sua dor era tanta que ela já não conseguia escutar a razão. Amy chamou seu nome mais de uma vez, mas sem resposta. Não podia chamar sua Pidgeot que seria um alvo fácil pelas pedras que despencavam. Subiu escadarias ancestrais e quase a perdeu de vista quando tropeçou e ralou o joelho. Estava se esforçando até demais por uma pessoa desconhecida.

“Ei. Mas essa é a Amy que eu conheço. Sempre colocando o bem estar do próximo acima do seu”, ela pensou na voz de Ethan que a apoiaria mesmo na pior das situações.

— Não. Eu sou egoísta e só faço o que me beneficia — ela pensou em voz alta, tentando se sabotar. — Quando foi a última vez que quase me sacrifiquei para salvar alguém que eu amava?

“Se eu estou aqui, é por sua causa. Então trate de voltar pra mim.”

— Merda — ela chacoalhou a cabeça, livrando-se daqueles pensamentos ao perceber o quanto ainda era apaixonada por ele. — Não me espere acordado, amor.

Assim que alcançou o cume da montanha, Amy percebeu que estava em uma sala sem saída. Martha estava parada no fim dela, encarando a parede como se esperasse que alguma coisa saltasse dali.

— Ainda não acabou — mencionou Martha, procurando algum sinal. — Eu vi acontecer na primeira vez. Sempre acontece à iminência de alguma tragédia. Está quase chegando.

Amy ajeitou seu chapéu ao perceber que uma lufada de ar consumiu a câmara. Entre as rochas daquela sala remota, uma fenda rachou a matéria e abriu um portal para outra dimensão. Parecia que uma parede de vidro havia se trincado por completo, dando espaço para uma abertura que levava a outra realidade.

Amy jamais ouvira falar sobre algo parecido, mas quando se deu conta de que Martha iria pular dentro da fenda, só soube que precisaria segui-la.

 

ii

 

As duas saltaram no portal, sendo transferidas para um mundo paralelo ao que viviam. Assim que abriu os olhos, Amy levou um susto com pequenos pedaços de rocha que flutuavam em sua frente como se não houvesse gravidade. Levantou-se e viu que o céu estava púrpuro, e não havia estrela alguma.

— Que lugar é esse? — perguntou Amy.

— É o Distortion World — concluiu Mars, incrédula. — Eu sabia que ele existia, mas não pensei que... eu não achava que seria capaz de encontrá-lo.

— Nós causamos isso?

— Sim. O Profº Charon vinha estudando uma forma de abrir fendas para outros mundos, e descobriu que isso acontecia com certa frequência quando meus sobrinhos estavam envolvidos. Não tente dar sentido a esse lugar.

— E o que encontraremos desse lado? — Amy a pressionou, mas Martha começou a correr em busca de algo.

Ou alguém.

As duas corriam apressadas saltando entre pedras e plataformas que flutuavam. Não se escutava som algum, não havia nada naquele mundo imaterial onde todas as leis conhecidas não tinham efeito. Quando deu-se conta, Amy estava de ponta cabeça e Mars passava repetidas vezes por ela sem sair do lugar.

— Martha, espere! Por que você veio aqui? O que procura? — perguntou Amy.

— Eu vim buscar o meu filho — ela respondeu com convicção.

Amy começou a reunir os fatos. Seria aquele mundo uma espécie de inferno na mitologia de Sinnoh? Se ali se encontravam todas as pessoas falecidas, torcia para que nenhum fantasma viesse assombrá-la, ou teria sérios problemas.

Martha não pensava em seu falecido chefe, Cyrus, nem em qualquer outra pessoa do passado que gostaria de rever. Só conseguia pensar em seu filho, e aquele sentimento desesperado fez suas pernas se moverem.

A única certeza que tinham era de que não estavam sozinhas. Era impossível que um local sagrado como aquele não tivesse o seu protetor. Estavam andando sem sair do lugar, mas em algum momento a Comandante Mars simplesmente parou e sentiu o corpo congelar. Amy não deu nem mais um passo.

Havia uma gigantesca serpente adormecida no núcleo daquele mundo. A criatura de escamas prateadas estava enrolada em si própria, repousando em silêncio absoluto. Sua dimensão ultrapassava os sete metros, e suas asas retraídas se pareciam com as de um demônio. Amy fez sinal de silêncio, ao qual Mars obedeceu.

— “Vá.” — A treinadora abriu a boca sem emitir som algum.

— “Para onde?” — perguntou Mars em silêncio, assustada demais para reagir.

— “Buscar o seu filho.”

Quando se deu conta, a serpente abriu um dos olhos. Mars correu para a direita e não olhou para trás. Amy continuou escondida atrás de uma pedra ao passo que a serpente se contorcia inteira como se despertasse do sono de mil anos com uma fome voraz. Seu objetivo era desviar a atenção de Martha e, quem sabe com um pouco de sorte, sair dali com vida.

Martha não soube exatamente para onde seguir, mas confiou que seu instinto a guiasse. Havia inúmeras saídas do Distortion World, fendas que levavam a lugares no universo dos quais ela nem poderia sonhar, mas somente uma delas a levaria de volta ao seu lar.

Ela procurou, procurou e procurou. Olhava para seu interior esperando que a resposta estivesse ali, nítida em sua frente. Viu lugares estranhos, mundo futuristas e terras de um passado esquecido. O que chamou sua atenção em uma das fendas foi a imagem de uma mulher com cabelos vermelhos muito parecidos com o seu. Martha parou e se aproximou devagar com a mão estendida.

— Esta... esta sou eu? — perguntou-se ela.

Quase não se reconhecia. Era uma versão mais jovem, muito mais bonita e atraente. Sentiu-se horrível por ter o corpo ferido, e aquilo só a fez pensar que nunca devia ter se tornado mãe. Mas a verdade era que sentia inveja de sua irmã adotiva, Melyssa, que concedeu a vida a Luke e Lukas, dois verdadeiros campeões.

— Não é justo — Martha lamentou em seu silêncio, indo de joelhos ao chão. — Não é justo. Não é justo.

E então, ela ouviu um chamado. Alguém a chamou de “mãe”. Martha ergueu os olhos e procurou dentro de cada uma das fendas, mas não via sua criança. Começou a se arrastar por entre o chão de poeira, triste e esgotada com tudo aquilo, mas o chamado se repetiu.

“Mãe, você está aí?”

— Sim. Sim, querido, onde você está? Como posso vê-lo?

Martha abriu os olhos e encarou uma fenda onde se via um rapaz belo de cabelos vermelhos como os seus, mas com os traços de Proton, seu marido. Ela soube na mesma hora que aquele era o seu filho, talvez vindo de outro universo onde ele havia sobrevivido e, assim, puderam viver uma vida felizes juntos.

— Você é tão lindo... — Martha murmurou com os lábios ressecados, tentando esticar a mão para tocá-lo, mas em vão.

O rapaz ergueu a mão e quis retribuir o gesto, mesmo que não sentisse.

“Eu estou bem, mamãe. Senti a sua falta.”

— Eu também, querido, todos os dias. Queria estar ao seu lado para sempre.

“Não é certo na natureza que um filho se vá antes daqueles que o geraram. Esta não é a ordem das coisas. No seu mundo eu posso ter partido cedo demais, mas, no meu, você nos deixou para que eu pudesse viver.”

— Então... eu morri? — indagou Martha com preocupação. — Quem cuidou de você e sua irmã?

“Nós tivemos de aprender a nos virar. Sem uma mãe, a vida não tem tanta graça. Mas você precisa continuar sendo uma por inteiro para cuidar daqueles que ainda estão ao seu lado. Não desista deles.”

Martha fechou o punho e quis abraçá-lo, mas aquela realidade era tão cruel que nem aquilo ela tinha o direito. Acenou com a cabeça e prometeu dar o seu melhor. Tinha perdido um filho, mas sua primeira filha ainda estava ali por ela. Proton a amava e protegeria enquanto tivesse forças para respirar.

Sentiu-se ingrata por ter agido daquela forma, abandonando sua única família. Era hora de voltar e pedir perdão para quem sabe assim tivesse a chance de recomeçar. Martha encarou dentro da fenda para tentar guardar na memória a imagem do filho. Pensar que em algum lugar ele crescera para se tornar um rapaz tão bonito a fez sentir-se orgulhosa, pois todo pai deseja acima de tudo que seu filho obtenha sucesso. Não precisava compará-lo com seus sobrinhos, ele podia não ser nenhum Campeão ou Top Coordenador, mas aos seus olhos sempre seria especial — pois era o seu filho.

— Mamãe te ama — Martha murmurou baixinho antes que o portal se fechasse. — Prometo que um dia vamos nos reencontrar.

 

Giratina sabia que alguém invadira sua morada. Com um sibilo, Amy teve a impressão de que pôde escutar uma voz como se conversasse com um humano.

“Como entrou aqui?”, perguntou Giratina. A serpente oscilava sua atenção, deixando claro que ainda não sabia exatamente onde ela se encontrava, embora soubesse que estava ali. “Faz muito tempo que não recebo visitas.”

Amy sentiu o coração disparar e a respiração ficar mais densa. E Giratina também sabia disso.

“Não fique nervosa. Eu não lhe farei mal algum”, disse a serpente ardilosa. “Saia das sombras para que eu a veja.”

A garota não se convenceu, e decidiu provocá-la.

— Sou aquela digna de amor.

Amy acessou uma memória muito antiga de quando ainda era menina e sua mãe lia histórias antes de dormir. Em uma delas, um indivíduo de origem simples confrontava um dragão em um jogo de enigmas, o que despertou seu interesse e permitiu que ele escapasse de sua cova com vida. Se pudesse colocar tal habilidade em prática, quem sabe assim conseguisse enganar a própria morte?

“Continue”, ordenou Giratina.

— Sou banhada em verde, e conquistei o Coração de Ouro.

“Seus títulos têm a minha atenção”, disse a serpente cada vez mais interessada. “E de onde você vem?”.

— Da terra onde tudo se originou.

“E você sente saudade de seu lar?”.

— Sinto.

“E por que se esgueira em minha casa como um ladrão em busca de algum tesouro perdido? O que tenho a lhe oferecer, senão dor e perda?”.

Amy precisou pensar rápido. Não podia dizer que entrara ali por acidente, ou tudo pareceria coincidência demais. Precisava prender a atenção de Giratina, e quem sabe levá-lo a cumprir com o que queria.

— O que você tem não se encontra em nenhum lugar do meu mundo.

“Isto é uma charada?”, ponderou a serpente, sentindo-se desafiada. Giratina flutuou por algum tempo contemplando os arredores e pensando no que possuía e que não existia em nenhum outro lugar. Com certeza não seriam pedras, mas estava de mal humor e não queria ficar de piadinhas com seu visitante, por isso respondeu: “Uma alma”.

Amy prendou a respiração. O que diria agora?

“Eu sei quem você busca. Ele está aqui, esperando-a a muito tempo”, disse Giratina. “Você deseja mesmo encontrá-lo?”

— N-não... — Amy vacilou em um segundo de fraqueza. Não podia pensar nele. Não podia demonstrar fraqueza para que a serpente entrasse em sua mente e fizesse o que bem entendesse com ela.

Mas era tarde demais. Amy viu-se de frente a um espelho, mas em sua frente havia uma garotinha de apenas dez anos. Enxergou a si mesma quando saiu em sua primeira aventura Pokémon, uma criança assustada sem os pais, cujo coração era repleto de apatia e insegurança.

Atrás da menina veio um homem vestido de terno. A criança pediu colo, mas o homem não a enxergou. Amy continuou a seguir o espelho, cada vez mais imersa naquela lembrança tão dolorosa.

— P-pai? — ela repetiu.

Giovanni olhou em sua direção, como se pudesse escutá-la, mas sem vê-la. Ele parecia preso dentro daquele mundo, uma alma que não se dera conta de que havia partido. Amy fechou os punhos e sentiu raiva. Não queria lembrar-se dele. Não precisava dele. Agora era uma mulher crescida, tinha a própria vida e quem a amasse do jeito que ela era. Ele nunca estivera ao seu lado quando precisou. Não seria levada a pensar que poderia fazer algo para remediar aquela ausência.

“O que você diria ao seu pai se pudesse encontrá-lo outra vez?”, Amy escutou a voz da serpente a incitá-la.

Ela encarou seu reflexo e pensou pelo que pareceu uma eternidade.

— Eu não preciso de você.

Sssssim.”

— Quando eu finalmente achei que tinha fugido de você, eu nunca mais quis encontrá-lo. Mas você continuava sendo o meu pai. Você mentiu para mim a vida toda, e depois omitiu algo que eu precisava saber. Você queria que eu tivesse nascido homem para substituí-lo um dia, mas pelo visto vim com defeito por ser mulher. Você me odiou simplesmente por eu vir ao mundo como sou.

Sssssim.”

— Mesmo assim, você ainda me assombra nos meus sonhos, como se implorasse por perdão. Sua partida se deu cheia de mágoas e arrependimento. Você se foi cedo demais, e nunca tive a chance de lhe dizer isso.

O quê, Amy? O quê você diria a ele?

Com lágrimas nos olhos, a garota encarou a criança no lado oposto ao espelho. A menina apertou com mais força um Bulbasaur de pelúcia que carregava nos braços. Amy libertou todo aquele misto de sentimentos que vinha acumulando ao longo dos anos, e com a voz embriagada, enfim admitiu:

— Eu te perdoo, pai. Por ter me deixado para seguir com sua vida. Pode não ter sido a coisa certa, mas sei que foi da única forma que sabia fazer. Nós dois somos egoístas, e isso herdei de você. Mas também herdei a vontade de vencer, de chegar ao topo do mundo e ter a certeza de que todos os dias fiz o que pude. Um dia eu me tornarei você também, mas quero que saiba que serei uma versão melhor, muito melhor.

Amy limpou uma lágrima solitária que escorria pelo seu rosto e olhou para trás.

Giratina a observava quieto, quase relutante. Gostava de colocar humanos frente a frente com seus piores medos, mas detestava vê-los vencendo. Banhava-se no caos, e seu alimento era a desesperança, a raiva e o ódio.

A serpente voltou a encolher-se e retornou devagar para dentro das sombras de onde saíra, enrolada como um feto, muda e enfraquecida. A brincadeira havia perdido toda a graça.

O espelho rompeu-se em mil pedacinhos e Amy viu-se liberta daquele mundo, e também de todos os medos da responsabilidade que um dia a assombraram. Ela fechou os olhos, e sentiu-se em paz consigo mesma.


Participe! Deixe um Comentário!

Subscribe to Posts | Subscribe to Comments

- Copyright © 2011-2023 Aventuras em Sinnoh - Escrito por Canas Ominous (Nícolas) - Powered by Blogger - Designed by CanasOminous -