Pokémon P.O.V. [Point
of View, em homenagem aos velhos tempos!]
O Garchomp desviou-se
bem a tempo de escapar de um golpe letal da Pidgeot que desceu com um rasante
feito um torpedo. Suas bicadas feriam com a força penetrante de uma lança, e
suas asas cortavam o próprio vento como se fossem lâminas de aço. Nenhuma
tentativa de usar o Stone Edge
funcionara, e só lhe restava energia para uma última investida.
A Pidgeot alçou voo e
fez uma parábola no ar, os olhos de águia agora fixos em seu adversário. Aerus
preparou-se para atingi-la em uma última tentativa desesperada. Quando desceu
com um Brave Bird, mirou a ponte de
pedras e errou por um triz, sendo atingido no ombro e arremessado no chão com a
colisão. A Pidgeot, entretanto, não se deu conta de um tiro vindo de fora da
batalha que a atingiu na asa direita que começou a fumegar e queimar,
comprometendo seu voo.
— Mayday! Mayday! — A
Pidgeot fez a curva a tempo de amenizar o impacto, mas acabou por
estrebuchar-se no chão e por pouco não quebrar uma das asas no processo. Se não
fosse uma aviadora tão experiente, poderia ter dado fim à sua carreira ali
mesmo.
— Quem
foi o filho de uma meretriz que se meteu no meio da nossa batalha?! —
Aerus berrou furioso, procurando o culpado pelo disparo.
— Não olha pra mim. Meus
tiros não são de fogo — Mikau respondeu logo atrás como quem só quer debochar.
Havia um exército de Heatran
aproximando-se da montanha, emergindo dos rios de lava e infestando as paredes
até que estivessem cobertas. Um deles fez um disparo contra o Garchomp que se
defendeu com suas lâminas que imediatamente começaram a derreter dado o calor
absurdo do magma.
— Parece que estamos
encurralados — disse General. O Dusknoir envolveu sua amada, Froslass, ao redor
dos braços, pronto para protegê-la de qualquer ataque.
— Eu posso tentar conter o
calor, mas são muitos — respondeu Glaciallis.
— Esse era um bom momento
para a guilda estar completa. Cadê o resto do pessoal? — indagou Sophie, a Gardevoir.
— Teremos de nos virar com as
armas que temos em mãos — acrescentou Chaud, o Bastiodon, com seu escudo pronto
para repelir.
O grupo de seis Pokémon
formou um círculo conforme os Heatran furiosos os cercavam, fechando cada vez
mais o cerco. As criaturas metálicas pareciam dispostas a ferir e até matar os
invasores que haviam profanado seu templo sagrado. Não que eles tivessem culpa,
cabia a uma guilda de Pokémon obedecer às ordens de seu treinador, e no momento
sua prioridade era escapar dali com vida.
— Alguém coloca aí o tema dos
Vingadores pra bater a inspiração? — caçoou Aerus.
— Eu nem sei o que é isso,
mas se tem vingança e sexo, então eu gosto — respondeu Mikau com seus tiros certeiros prontos
para atingir o alvo.
O primeiro Heatran deu um
salto na direção do grupo, e foi imediatamente atingido por um Hydro Pump na cabeça. À esquerda de
Mikau, Glaciallis congelava três deles na medida em que General e Chaud
montavam uma barreira ao seu redor. Sophie previu através de seu Future Sight que cinco deles cairiam, e
na sequência uma explosão psíquica os mandou pelos ares.
Aerus estava na linha de
frente do combate quando percebeu que seus inimigos formaram uma fileira e
abriram espaço para seu líder. Um Heatran maior do que qualquer outro
aproximou-se suntuoso, armado até a cabeça em ferro e metal e cuja espada
flamejante fumegava em uma das mãos.
— Você deve ser o alfa —
presumiu o Garchomp.
O cavaleiro não disse palavra
alguma, mas a espada zuniu em sua mão pronta para o embate. Aerus defendeu-se
da primeira investida, buscando a melhor alternativa de enfrentá-lo sem
utilizar seu melhor golpe. O Earthquake
era uma técnica perigosa. Com todos seus companheiros por perto, o golpe
acabaria por atingi-los e até comprometer a estrutura da montanha. O cavaleiro
não estava para brincadeira, continuou a avançar com ferocidade, dominado por
uma fúria avassaladora. Existia certa sutileza na forma como sua espada era
empunhada, deixando um rastro de fagulhas e brilho incandescente que cortava o
ar.
Aerus ativou suas lâminas e
usou o Dragon Claw bem no peito do
cavaleiro, fincando-as na armadura de aço. Para o seu azar, elas ficaram
presas, o que deu a abertura para que seu oponente lhe devolvesse uma cabeçada
que o fez enxergar estrelas.
Sophie correu para
socorrê-lo, dando cobertura através do Heal
Pulse para que recuperasse a energia. Mikau estava começando a ficar sem munição,
e os Heatran inferiores continuavam a proteger seu alfa.
O grupo viu-se encurralado
mais uma vez, pressionados contra o abismo de lava sobre eles. Os Fire Tales
podiam ter muitas histórias para compartilhar ao redor de uma fogueira quente,
mas encarar todo um exército da guilda vulcânica era suicídio.
O cavaleiro marchava com
passos pesados, aguardando a rendição. Agarrou Aerus pela garganta e o ergueu à
sua altura. Só se enxergava um par de olhos alaranjados por baixo do elmo que protegia
sua cabeça como uma coroa. Sua voz gutural espalhava terror e insegurança:
— Vão se arrepender de ter
pisado em solo sagrado — disse o cavaleiro.
— É que tenho o costume de
entrar sem ser convidado pra festa — murmurou Aerus que nunca perdia a chance
de provocar alguém.
A manopla de ferro começou a pressioná-lo
com mais força, mas um tiro o atingiu com precisão no ombro e o fez soltar com
um grito de dor. Mikau estava sem munição, então quem poderia ter sido?
Na abertura mais distante da
caverna, o Gyarados de Amy certificou-se de que o próximo seria na cabeça, pois
seu título como um dos maiores atiradores de Kanto o presidia. A guilda de
Pidgeot veio ao seu resgate, trazendo consigo o Primeape campeão de luta dos
pesos médios, a Sneasel que atuava nas sombras como assassina de aluguel, o
Venomoth cujos venenos letais derrubavam reinos e o Gengar Shiny que se
limitava a rir e caçoar da situação.
As duas guildas uniram forças
para controlar a batalha, combatendo um a um os soldados vulcânicos que
protegiam o templo até que não sobrasse nenhum. O Cavaleiro de Fogo se reergueu,
e sua espada ardeu como um farol na escuridão. Aerus estava pronto para seu
embate final quando percebeu que o som da batalha cessou, e nenhum de seus
companheiros lutava mais.
Olhou para trás por
curiosidade e avistou uma única mulher erguer-se contra todos eles. Era uma
descendente da tribo ancestral dos Garchomp, alta, esguia e de porte invejável
como uma rainha de outrora. O mero vislumbre de alguém tão importante capaz de
emanar uma aura esmagadora como aquela o fez pensar em Titânia, e seu coração
se encheu de saudade. General e Chaud fizeram uma mesura ao reconhecerem a
ilustríssima figura, e até mesmo Mikau intimidou-se diante de sua presença.
Aerus precisou retirar seus óculos escuros assim que ela passou ao seu lado.
— V-você... — Seus lábios
tremiam ao dizer seu nome.
— Kayla. O prazer é todo seu.
Vim em nome de minha mestra, Cynthia, para colocar um fim em toda essa guerra
desnecessária — respondeu a Garchomp, convicta. — Se continuarem lutando, ambos
os lados sofrerão casualidades. E se alguém ainda quiser lutar... então venha.
Eu serei sua adversária.
Um a um, os soldados Heatran
largaram suas espadas e se renderam. Mesmo os Fire Tales reconheceram que a
mera presença dela era o bastante para fazer qualquer um abaixar as armas.
Porém, o Cavaleiro de Fogo não se deu por intimidado, e com velocidade impressionante
ergueu sua espada flamejante contra ela. Kayla limitou-se a erguer sua lâmina,
e sem que qualquer um pudesse acompanhar seu movimento, o inimigo foi atingido
tantas vezes que sua armadura inteira se rompeu, sendo completamente retalhada.
Tendo sido derrotado em
combate, todos puderam ver o verdadeiro rosto do cavaleiro. Era uma mulher de
cabelos vermelhos e olhos incansáveis, pingando suor após a exaustiva batalha.
Sua visão ficou turva, as pernas cederam e seu corpo fraquejou para a direita, mas
Aerus lhe deu apoio para que continuasse de pé.
— Um líder não pode cair na
frente de seus homens — disse o Garchomp.
A cavaleira sorriu e
concordou, passando a admirá-lo ainda mais.
— Você é mesmo tudo aquilo
que falam e mais um pouco.
— Pra conhecer mais de mim,
só convivendo com esse bando de loucos que chamo de família — brincou Aerus,
deixando no ar um convite indireto para que ela se juntasse aos Fire Tales.
Com a situação controlada,
sua atenção voltou-se à Garchomp, uma das primeiras a consagrar-se campeã no
Torneio das Guildas e provavelmente a figura mais forte e influente em todo o
reino. Aerus aproximou-se dela de queixo erguido, e quem não o conhecia
imaginou que ali aconteceria um embate entre alfas para disputar quem era o
mais poderoso; embora seus amigos de longa data da guilda soubessem bem o que
ele estava para trazer.
— Eu não acredito que to te conhecendo! Eu sou
seu maior fã! — disse Aerus explodindo de empolgação como uma criancinha que
encontra seu ídolo pela primeira vez. — Mano do céu, esse é o dia mais feliz da
minha vida! Digo, talvez seja o segundo, porque antes vem o nascimento da minha
filha; mas posso dizer com certeza que conhecer você estava na minha listinha!
— Encantada — correspondeu
Kayla, acostumada com os fãs.
— Será que... você podia
assinar o meu tanquinho?
— Aerus, essa não é uma boa
ideia... — General estava para acrescentar o fato de que Titânia não iria
gostar nem um pouco de ver o nome de outra mulher escrito na barriga de seu
macho, mas Mikau fez menção que ele ficasse quieto só para ver o circo pegar
fogo.
— Vocês da Fire Tales são
mesmo uma figura! — brincou Kayla.
— Quer dizer que a senhorita
já ouviu falar sobre nós? — perguntou Chaud.
— Se ouvi? Garoto, vocês me
inspiraram a voltar. Se tivermos a chance, eu adoraria poder enfrentá-los no
Torneio de Guildas algum dia. Sem fatalidades dessa vez, claro.
— Pode deixar que eu me
comprometo a reunir o bando! — disse Aerus contente. — Nós não paramos de
treinar desde que nos consagramos campeões aquele ano. Olhando para trás,
passou mesmo um tempão... E quer saber? Eu senti saudade de tudo isso. Estamos
ansiosos para voltar!
i
Luke arremessou a Dusk Ball que acertou com precisão a
Heatran fêmea que acabara de ser derrotada. A pokébola tremeluziu três vezes
antes de confirmar a captura do Lendário Pokémon. As demais criaturas
vulcânicas retornaram para dentro de seus buracos e rios de magma,
escondendo-se assustados quando perceberam que a situação se agravara.
— Acho que nossa batalha meio
que fugiu do controle — mencionou Amy.
Luke olhou para o alto e
percebeu que a montanha estava, de fato, ruindo.
— É. Deu ruim.
— Está acontecendo.
Finalmente meu plano está tomando forma — murmurou o Profº Charon, escondido
atrás de uma pedra.
Através da interferência da Magma Stone e o caos gerado pelos
Heatran, o vulcão adormecido sob a Stark
Mountain estava prestes a explodir. Amy retornou seus Pokémon, convicta de
que agora tinha um objetivo muito mais importante para resolver do que limpar a
sujeira deixada pelos Rockets. Muito distante dali, Luke pôde avistar Cynthia
acenando com um dos braços. Ela estava em uma área elevada no interior da
montanha, e enviara sua Garchomp para auxiliar na batalha. Junto dela estava
Dawn, em segurança, o que aquietou o coração de Luke e o permitiu concentrar-se
em outros problemas.
— Temos que impedir esse
vulcão de entrar em erupção, ou colocaremos em risco a vida de milhares de
pessoas que vivem nessa ilha — Luke contou para Amy, buscando algum conselho.
A moça por sua vez não tardou
a perceber que alguém se escondia ali perto. Quando Charon tentou escapar, ela
deu um pisão em seu jaleco e o fez tropeçar e ir de cara ao chão.
— Você é quem está por trás
disso tudo, não é? Diga-me agora o que temos de fazer para reverter essa
situação — Amy o confrontou.
— Nada. Vocês não precisam
fazer absolutamente nada — retrucou Charon. — Isso não é irônico?
— O que está tentando
insinuar? — indagou o rapaz.
— Luke Wallers — Charon
dirigiu-se a ele. — Você não percebe como sua vida é abençoada? Todas as coisas
se ajeitam para você e seu irmão, mesmo que através de soluções impossíveis
como um tremendo deus ex-machina.
Você sempre tem a certeza de que tudo vai terminar bem, não é? É como se vocês
fossem abençoados... pelas divindades.
Uma enorme rocha desgrudou-se
do teto e por pouco não os atingiu. Luke começou a juntar as peças e só
conseguiu pensar em seu irmão. Lukas namorava uma deusa. A mulher que eles conheciam como Paula não passava do
disfarce de uma entidade divina capaz de controlar as dimensões do espaço,
alterando a realidade a bel prazer. Seu nome verdadeiro era Pearlutina, e era
inegável o quanto sua proteção afetara sua jornada. Estaria aquele tempo todo apostando
tão alto porque o destino estava do seu lado?
— Está insinuando que tudo
que eu conquistei foi mera sorte? — questionou Luke furioso, puxando o velho
cientista pela gola.
— Eu não chamaria de sorte —
ponderou Charon. — Mas é inegável que alguém
quis que você chegasse até aqui, não acha?
Lava começou a ser expelida,
e o calor estava prestes a se tornar insuportável. Amy chamou por Cosmo e Star
e ordenou que eles ajudassem na evacuação de quem quer que ainda estivesse
preso dentro do laboratório dos Galactic. Enquanto se preparavam para a fuga, a
Comandante Mars deu as caras, mas acabou por encontrar-se com quem não
gostaria.
— Tia Martha? — Luke esboçou
surpresa ao vê-la. — Por onde você esteve? Estávamos todos procurando por você.
Mamãe não tem notícias sua há meses...
— E-eu... — A Comandante
pareceu acuada, e não quis lhe dar satisfações. — Me perdoe.
Martha correu na direção
oposta, abandonando seu compromisso com os Galactics e também a sua segurança.
Luke estava para ir atrás dela quando Amy o impediu.
— O que você tá fazendo?! Ela
é a minha tia!
— Deixa que eu resolvo —
retrucou Amy. — Ela está passando por algo que nenhum de vocês entenderia. Eu
prometo que irei trazê-la de volta. Concentre-se em ajudar as pessoas a
evacuarem a montanha em segurança.
Ainda que não a conhecesse
tão bem, Luke sabia que podia confiar em uma treinadora tão forte e capacitada.
Deixou a caverna às pressas enquanto Amy corria em direção do perigo atrás de
Martha, cada vez mais fundo no coração da montanha.
Martha estava surda para tudo
que se movesse. Sua dor era tanta que ela já não conseguia escutar a razão. Amy
chamou seu nome mais de uma vez, mas sem resposta. Não podia chamar sua Pidgeot
que seria um alvo fácil pelas pedras que despencavam. Subiu escadarias
ancestrais e quase a perdeu de vista quando tropeçou e ralou o joelho. Estava
se esforçando até demais por uma pessoa desconhecida.
“Ei. Mas essa é a Amy que eu
conheço. Sempre colocando o bem estar do próximo acima do seu”, ela pensou na
voz de Ethan que a apoiaria mesmo na pior das situações.
— Não. Eu sou egoísta e só
faço o que me beneficia — ela pensou em voz alta, tentando se sabotar. — Quando
foi a última vez que quase me sacrifiquei para salvar alguém que eu amava?
“Se eu estou aqui, é por sua
causa. Então trate de voltar pra mim.”
— Merda — ela chacoalhou a
cabeça, livrando-se daqueles pensamentos ao perceber o quanto ainda era
apaixonada por ele. — Não me espere acordado, amor.
Assim que alcançou o cume da
montanha, Amy percebeu que estava em uma sala sem saída. Martha estava parada
no fim dela, encarando a parede como se esperasse que alguma coisa saltasse
dali.
— Ainda não acabou —
mencionou Martha, procurando algum sinal. — Eu vi acontecer na primeira vez.
Sempre acontece à iminência de alguma tragédia. Está quase chegando.
Amy ajeitou seu chapéu ao
perceber que uma lufada de ar consumiu a câmara. Entre as rochas daquela sala
remota, uma fenda rachou a matéria e abriu um portal para outra dimensão.
Parecia que uma parede de vidro havia se trincado por completo, dando espaço
para uma abertura que levava a outra realidade.
Amy jamais ouvira falar sobre
algo parecido, mas quando se deu conta de que Martha iria pular dentro da
fenda, só soube que precisaria segui-la.
ii
As duas saltaram no portal,
sendo transferidas para um mundo paralelo ao que viviam. Assim que abriu os
olhos, Amy levou um susto com pequenos pedaços de rocha que flutuavam em sua
frente como se não houvesse gravidade. Levantou-se e viu que o céu estava
púrpuro, e não havia estrela alguma.
— Que lugar é esse? —
perguntou Amy.
— É o Distortion World — concluiu Mars, incrédula. — Eu sabia que ele
existia, mas não pensei que... eu não achava que seria capaz de encontrá-lo.
— Nós causamos isso?
— Sim. O Profº Charon vinha
estudando uma forma de abrir fendas para outros mundos, e descobriu que isso
acontecia com certa frequência quando meus sobrinhos estavam envolvidos. Não
tente dar sentido a esse lugar.
— E o que encontraremos desse
lado? — Amy a pressionou, mas Martha começou a correr em busca de algo.
Ou alguém.
As duas corriam apressadas
saltando entre pedras e plataformas que flutuavam. Não se escutava som algum,
não havia nada naquele mundo imaterial onde todas as leis conhecidas não tinham
efeito. Quando deu-se conta, Amy estava de ponta cabeça e Mars passava
repetidas vezes por ela sem sair do lugar.
— Martha, espere! Por que você
veio aqui? O que procura? — perguntou Amy.
— Eu vim buscar o meu filho —
ela respondeu com convicção.
Amy começou a reunir os
fatos. Seria aquele mundo uma espécie de inferno na mitologia de Sinnoh? Se ali
se encontravam todas as pessoas falecidas, torcia para que nenhum fantasma
viesse assombrá-la, ou teria sérios problemas.
Martha não pensava em seu
falecido chefe, Cyrus, nem em qualquer outra pessoa do passado que gostaria de
rever. Só conseguia pensar em seu filho, e aquele sentimento desesperado fez
suas pernas se moverem.
A única certeza que tinham
era de que não estavam sozinhas. Era impossível que um local sagrado como
aquele não tivesse o seu protetor. Estavam andando sem sair do lugar, mas em
algum momento a Comandante Mars simplesmente parou e sentiu o corpo congelar.
Amy não deu nem mais um passo.
Havia uma gigantesca serpente
adormecida no núcleo daquele mundo. A criatura de escamas prateadas estava
enrolada em si própria, repousando em silêncio absoluto. Sua dimensão
ultrapassava os sete metros, e suas asas retraídas se pareciam com as de um
demônio. Amy fez sinal de silêncio, ao qual Mars obedeceu.
— “Vá.” — A treinadora abriu
a boca sem emitir som algum.
— “Para onde?” — perguntou
Mars em silêncio, assustada demais para reagir.
— “Buscar o seu filho.”
Quando se deu conta, a
serpente abriu um dos olhos. Mars correu para a direita e não olhou para trás.
Amy continuou escondida atrás de uma pedra ao passo que a serpente se contorcia
inteira como se despertasse do sono de mil anos com uma fome voraz. Seu
objetivo era desviar a atenção de Martha e, quem sabe com um pouco de sorte,
sair dali com vida.
Martha não soube exatamente
para onde seguir, mas confiou que seu instinto a guiasse. Havia inúmeras saídas
do Distortion World, fendas que
levavam a lugares no universo dos quais ela nem poderia sonhar, mas somente uma
delas a levaria de volta ao seu lar.
Ela procurou, procurou e
procurou. Olhava para seu interior esperando que a resposta estivesse ali,
nítida em sua frente. Viu lugares estranhos, mundo futuristas e terras de um
passado esquecido. O que chamou sua atenção em uma das fendas foi a imagem de
uma mulher com cabelos vermelhos muito parecidos com o seu. Martha parou e se
aproximou devagar com a mão estendida.
— Esta... esta sou eu? —
perguntou-se ela.
Quase não se reconhecia. Era
uma versão mais jovem, muito mais bonita e atraente. Sentiu-se horrível por ter
o corpo ferido, e aquilo só a fez pensar que nunca devia ter se tornado mãe.
Mas a verdade era que sentia inveja de sua irmã adotiva, Melyssa, que concedeu
a vida a Luke e Lukas, dois verdadeiros campeões.
— Não é justo — Martha
lamentou em seu silêncio, indo de joelhos ao chão. — Não é justo. Não é justo.
E então, ela ouviu um
chamado. Alguém a chamou de “mãe”. Martha ergueu os olhos e procurou dentro de
cada uma das fendas, mas não via sua criança. Começou a se arrastar por entre o
chão de poeira, triste e esgotada com tudo aquilo, mas o chamado se repetiu.
“Mãe, você está aí?”
— Sim. Sim, querido, onde você
está? Como posso vê-lo?
Martha abriu os olhos e
encarou uma fenda onde se via um rapaz belo de cabelos vermelhos como os seus,
mas com os traços de Proton, seu marido. Ela soube na mesma hora que aquele era
o seu filho, talvez vindo de outro universo onde ele havia sobrevivido e,
assim, puderam viver uma vida felizes juntos.
— Você é tão lindo... —
Martha murmurou com os lábios ressecados, tentando esticar a mão para tocá-lo,
mas em vão.
O rapaz ergueu a mão e quis
retribuir o gesto, mesmo que não sentisse.
“Eu estou bem, mamãe. Senti a
sua falta.”
— Eu também, querido, todos
os dias. Queria estar ao seu lado para sempre.
“Não é certo na natureza que
um filho se vá antes daqueles que o geraram. Esta não é a ordem das coisas. No
seu mundo eu posso ter partido cedo demais, mas, no meu, você nos deixou para
que eu pudesse viver.”
— Então... eu morri? —
indagou Martha com preocupação. — Quem cuidou de você e sua irmã?
“Nós tivemos de aprender a
nos virar. Sem uma mãe, a vida não tem tanta graça. Mas você precisa continuar
sendo uma por inteiro para cuidar daqueles que ainda estão ao seu lado. Não
desista deles.”
Martha fechou o punho e quis
abraçá-lo, mas aquela realidade era tão cruel que nem aquilo ela tinha o
direito. Acenou com a cabeça e prometeu dar o seu melhor. Tinha perdido um
filho, mas sua primeira filha ainda estava ali por ela. Proton a amava e
protegeria enquanto tivesse forças para respirar.
Sentiu-se ingrata por ter
agido daquela forma, abandonando sua única família. Era hora de voltar e pedir
perdão para quem sabe assim tivesse a chance de recomeçar. Martha encarou
dentro da fenda para tentar guardar na memória a imagem do filho. Pensar que em
algum lugar ele crescera para se tornar um rapaz tão bonito a fez sentir-se
orgulhosa, pois todo pai deseja acima de tudo que seu filho obtenha sucesso.
Não precisava compará-lo com seus sobrinhos, ele podia não ser nenhum Campeão
ou Top Coordenador, mas aos seus olhos sempre seria especial — pois era o seu filho.
— Mamãe te ama — Martha
murmurou baixinho antes que o portal se fechasse. — Prometo que um dia vamos nos
reencontrar.
Giratina sabia que alguém
invadira sua morada. Com um sibilo, Amy teve a impressão de que pôde escutar
uma voz como se conversasse com um humano.
“Como entrou aqui?”,
perguntou Giratina. A serpente oscilava sua atenção, deixando claro que ainda
não sabia exatamente onde ela se encontrava, embora soubesse que estava ali.
“Faz muito tempo que não recebo visitas.”
Amy sentiu o coração disparar
e a respiração ficar mais densa. E Giratina também sabia disso.
“Não fique nervosa. Eu não
lhe farei mal algum”, disse a serpente ardilosa. “Saia das sombras para que eu
a veja.”
A garota não se convenceu, e
decidiu provocá-la.
— Sou aquela digna de amor.
Amy acessou uma memória muito
antiga de quando ainda era menina e sua mãe lia histórias antes de dormir. Em
uma delas, um indivíduo de origem simples confrontava um dragão em um jogo de
enigmas, o que despertou seu interesse e permitiu que ele escapasse de sua cova
com vida. Se pudesse colocar tal habilidade em prática, quem sabe assim
conseguisse enganar a própria morte?
“Continue”, ordenou Giratina.
— Sou banhada em verde, e
conquistei o Coração de Ouro.
“Seus títulos têm a minha
atenção”, disse a serpente cada vez mais interessada. “E de onde você vem?”.
— Da terra onde tudo se
originou.
“E você sente saudade de seu
lar?”.
— Sinto.
“E por que se esgueira em minha
casa como um ladrão em busca de algum tesouro perdido? O que tenho a lhe
oferecer, senão dor e perda?”.
Amy precisou pensar rápido.
Não podia dizer que entrara ali por acidente, ou tudo pareceria coincidência
demais. Precisava prender a atenção de Giratina, e quem sabe levá-lo a cumprir
com o que queria.
— O que você tem não se
encontra em nenhum lugar do meu mundo.
“Isto é uma charada?”, ponderou
a serpente, sentindo-se desafiada. Giratina flutuou por algum tempo
contemplando os arredores e pensando no que possuía e que não existia em nenhum
outro lugar. Com certeza não seriam pedras, mas estava de mal humor e não
queria ficar de piadinhas com seu visitante, por isso respondeu: “Uma alma”.
Amy prendou a respiração. O
que diria agora?
“Eu sei quem você busca. Ele
está aqui, esperando-a a muito tempo”, disse Giratina. “Você deseja mesmo
encontrá-lo?”
— N-não... — Amy vacilou em
um segundo de fraqueza. Não podia pensar nele. Não podia demonstrar fraqueza
para que a serpente entrasse em sua mente e fizesse o que bem entendesse com
ela.
Mas era tarde demais. Amy
viu-se de frente a um espelho, mas em sua frente havia uma garotinha de apenas
dez anos. Enxergou a si mesma quando saiu em sua primeira aventura Pokémon, uma
criança assustada sem os pais, cujo coração era repleto de apatia e
insegurança.
Atrás da menina veio um homem
vestido de terno. A criança pediu colo, mas o homem não a enxergou. Amy continuou
a seguir o espelho, cada vez mais imersa naquela lembrança tão dolorosa.
— P-pai? — ela repetiu.
Giovanni olhou em sua
direção, como se pudesse escutá-la, mas sem vê-la. Ele parecia preso dentro
daquele mundo, uma alma que não se dera conta de que havia partido. Amy fechou
os punhos e sentiu raiva. Não queria lembrar-se dele. Não precisava dele. Agora
era uma mulher crescida, tinha a própria vida e quem a amasse do jeito que ela
era. Ele nunca estivera ao seu lado quando precisou. Não seria levada a pensar
que poderia fazer algo para remediar aquela ausência.
“O que você diria ao seu pai
se pudesse encontrá-lo outra vez?”, Amy escutou a voz da serpente a incitá-la.
Ela encarou seu reflexo e
pensou pelo que pareceu uma eternidade.
— Eu não preciso de você.
“Sssssim.”
— Quando eu finalmente achei
que tinha fugido de você, eu nunca mais quis encontrá-lo. Mas você continuava
sendo o meu pai. Você mentiu para mim a vida toda, e depois omitiu algo que eu
precisava saber. Você queria que eu tivesse nascido homem para substituí-lo um
dia, mas pelo visto vim com defeito por ser mulher. Você me odiou simplesmente
por eu vir ao mundo como sou.
“Sssssim.”
— Mesmo assim, você ainda me
assombra nos meus sonhos, como se implorasse por perdão. Sua partida se deu cheia
de mágoas e arrependimento. Você se foi cedo demais, e nunca tive a chance de
lhe dizer isso.
“O quê, Amy? O quê você diria a ele?”
Com lágrimas nos olhos, a
garota encarou a criança no lado oposto ao espelho. A menina apertou com mais
força um Bulbasaur de pelúcia que carregava nos braços. Amy libertou todo
aquele misto de sentimentos que vinha acumulando ao longo dos anos, e com a voz
embriagada, enfim admitiu:
— Eu te perdoo, pai. Por ter
me deixado para seguir com sua vida. Pode não ter sido a coisa certa, mas sei
que foi da única forma que sabia fazer. Nós dois somos egoístas, e isso herdei
de você. Mas também herdei a vontade de vencer, de chegar ao topo do mundo e
ter a certeza de que todos os dias fiz o que pude. Um dia eu me tornarei você
também, mas quero que saiba que serei uma versão melhor, muito melhor.
Amy limpou uma lágrima
solitária que escorria pelo seu rosto e olhou para trás.
Giratina a observava quieto,
quase relutante. Gostava de colocar humanos frente a frente com seus piores
medos, mas detestava vê-los vencendo. Banhava-se no caos, e seu alimento era a
desesperança, a raiva e o ódio.
A serpente voltou a
encolher-se e retornou devagar para dentro das sombras de onde saíra, enrolada
como um feto, muda e enfraquecida. A brincadeira havia perdido toda a graça.
O espelho rompeu-se em mil
pedacinhos e Amy viu-se liberta daquele mundo, e também de todos os medos da
responsabilidade que um dia a assombraram. Ela fechou os olhos, e sentiu-se em
paz consigo mesma.
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