Ilustrações do Mangá feitas por Nyx.
Dizem que as pessoas perdem noção de tudo ao seu redor
quando a raiva as consome. Diante de uma ira iminente não há muito a se fazer,
além de sair do caminho.
Watt mal podia acreditar no
que seus olhos lhe contavam. Aerus Draconeon, o líder da Fire Tales, realmente
havia entrado em combate? General vivia lhe aconselhando a guardar suas forças
para os duelos finais, para os momentos em que realmente precisassem; mas falar
com aquele Garchomp teimoso era o mesmo que jogar todas as suas palavras ao
relento. Elas não faziam mais sentido algum. Principalmente agora.
Sonnen e Aerus se destruíam no
campo de batalha. O Gallade carregava tantas armas que tinha disponível e cada uma delas parecia
ter vida própria, uma história particular, uma experiência a ser
compartilhada. O exército de um só homem, era como o chamavam. Diante de tamanha perícia, poucos eram capazes de fazer frente.
A raiva dentro do coração de
Aerus era intensa demais para que ele se pronunciasse. Seus gestos refletiam o
que estava em seu coração — um ódio incomparável, um sentimento de injustiça,
ingratidão —, mas ao mesmo tempo, o sentimento de que sua função ali nada mais
era do que justamente aquela. Cumprir com o que lhe era incumbido. Afinal, não
era esta a obrigação de um Pokémon?
— G-General, ele está saindo
do controle! — alertou o pequeno Watt.
— É o Outrage, uma das técnicas
supremas dos dragões — Seth respondeu logo ao lado. — Ainda me lembro
de quando o ensinei a libertar seu poder e controlá-lo, mas a diferença é que
quando usado, ele não é capaz de ser parado.
— Mas meu irmão ainda pode distinguir o
certo e o errado? — indagou Watt.
Seu companheiro alado acenou
com um gesto da cabeça.
— Sim, ele ainda é o Aerus
Draconeon que conhecemos — explicou-lhe o Dragonite. — Mas o que mais
o aflige é justamente o fato de que levaram um pedaço do coração dele. Uma
pequena e singela parcela, uma ferida que nenhum outro oponente tinha
conseguido até hoje.
— Ser apunhalado no peito
não teria machucado tanto quanto um amigo que lhe é tirado — continuou
General, austero e atento com a batalha que se seguia.
De todos os membros da Fire
Tales, o militar era quem mais pedira para que Aerus tentasse manter o
controle. Na Primeira Casa, tudo havia ocorrido suficientemente bem para que o
dragão se acalmasse e tivesse confiança o suficiente de que tudo daria certo na
Liga Pokémon, tudo terminaria bem. Mas a realidade se evidenciara, revelando a
dura dualidade que se esperava ignorar até quanto tivesse a oportunidade.
As duas armas em seu antebraço
estavam ativadas, as lâminas rodopiavam como furacões vermelhos que perfuravam
até mesmo o pilar mais sólido presente no estágio. Aerus era temido por toda
uma nação, muitos ouviam falar de seus feitos, o poderoso dragão dos olhos
dourados, mas a sua fama o precedia. Era a primeira vez que participava de uma
Liga Pokémon, não tinha tanta experiência quanto os demais. Enfrentara os
membros clonados na Ilha de Ferro e derrubou lendários no topo do Spear Pillar.
Mas encarar a dor da guerra, a dor de uma perda... Essa era a primeira vez.
Sonnen mostrava sua verdadeira
habilidade como um comandante, um líder que parte diretamente para a linha de combate frente a frente de seus inimigos. Se até então ele vinha lutando no mesmo nível de
Sophie, agora parecia que tudo aquilo não passara de uma encenação barata de
duas crianças que brincam com espadas de madeira. Agora sim Sonnen carregava suas armas com uma precisão mortal, partia com seu arsenal completo de técnicas e atacava para
matar.
Investiu com velocidade,
retirou duas espadas da bainha e golpeou-as com velocidade contra as ombreiras
de ferro de Aerus que aguentaram firme o tranco, mas terminaram com um corte
tão profundo que chegou a rasgar sua pele. O dragão não estava em condições de
hesitar pelo machucado, mas se não tivesse seguido os conselhos do ferreiro
Chaud e reforçado sua armadura, provavelmente teria saído dali sem os dois
braços.
Sonnen mantinha o cenho franzido. Do seu rosto, uma gota de suor escorria.
— Eu sou Sonnen, o mestre
espadachim, membro dos renomados Remarkable Five, e não permitirei que você
passe — disse o Gallade, como se aquela fase automática já estivesse
pronta desde o começo da luta.
A imagem de Sophie lhe veio à
mente, e ele vacilou.
As técnicas de Sonnen não se
limitavam mais a usar simples espadas de aço. Quando Aerus o desarmou, o
guerreiro psíquico provou porque era o representante daquela casa. Usando duas
katanas, uma em cada mão, outras quatro espadas flutuavam ao seu redor e
combatiam com a mesma destreza de seu mestre. Uma chuva de faíscas
criavam um espetáculo nos ares, Aerus encontrava-se sozinho diante de um dos
maiores lutadores do mundo, mas tinha o seu ódio para acompanhá-lo. Não por
vingança, mas por determinação. Queria que o sacrifício de Sophie não fosse em
vão, queria mais do que nunca terminar tudo aquilo e voltar para casa... Mas
ainda era cedo. Cedo demais para voltar.
A lua continuava em seu pico
revelando-se grandiosa com toda palidez, como a pele alva de uma mulher que
agora repousava inerte e tranquila no cão frio de um céu sem estrelas.
Aerus rebateu as katanas de
seu adversário enquanto pôde. Sonnen saltou para longe e dessa vez esticou suas
mãos, materializando um imenso machado de guerra com duas lâminas. Seus golpes
eram ágeis mesmo com uma arma daquele tamanho, o dragão concentrou-se em
esquivar-se e não demorou em acertá-lo no queixo, o que fez Sonnen afastar-se.
— Tenho um arsenal de armas
preparadas contra você, nossa luta mal começou — disse o Gallade.
— Nossa luta já acabou —
corrigiu Aerus, gritando com todas as suas forças em uma ira incontida. —
Acabou antes mesmo de começar, seu jogo está zerado!
— Não costumo perder em minhas
partidas. Não gosto de perder — Sonnen continuava sério e com a expressão
imóvel, materializando uma arma diferente. Dessa vez era uma longa lança e uma
espada com adornos antigos e lâmina dourada. Com apenas suas duas lâminas
ocultas, o dragão partiu sem medo algum.
Parecia que algo havia morrido
dentro daquele guerreiro tão brincalhão e espontâneo. Sonnen nada temia, agia
por impulso como se fosse uma máquina programada para matar. Aerus acertou o
chão com força e um pilar de pedras foi disparado contra o Gallade, o Stone Edge. Sonnen deu uma cambalhota para o lado
e apreçou-se em esticar um dos braços contra o pilar de
pedras pontiagudas que disparavam em sua direção. Usou suas mãos
e os poderes psíquicos que lhe foram concedidos para pará-las todas no ar. O
tempo ao seu redor parou. Ao fechar os punhos com força, as pedras foram todas
esmigalhadas em mil pedaços.
— Aparentemente, os poderes
psíquicos dele são fortes o suficiente para representá-lo em uma casa de tipo
elementar equivalente — comentou General, ao longe.
Sonnen sempre evitara utilizar
aquele tipo de técnica para não lembrá-lo da irmã. E agora, ela estava ali...
Tão perto, e ao mesmo tempo, tão distante! O ápice da ironia e da contradição.
Demorara anos para reencontrá-la, para que a luta terminasse daquela maneira,
com o golpe final vindo de suas mãos.
O Garchomp avançou mais uma
vez, e Sonnen o rebateu como se fosse um pequeno inseto indesejado. O
dragão recuou ofegante, mas seu corpo ainda queimava e o ódio borbulhava dentro
de si. Foi quando pôde observar os olhos de seu inimigo com mais atenção.
Inalteráveis. Parecia cansado, mas agia como um soldado que nunca cansa de
defender o seu posto. O que mais surpreendeu Aerus durante toda a batalha
é que Sonnen não demonstrara remorso. Não havia derrubado sequer
uma lágrima.
— Você não sente nada? —
indagou o dragão.
— E por que eu deveria? —
perguntou Sonnen. — Esta é uma batalha, é a Liga Pokémon. O inevitável pode
acontecer, o imprevisível pode surpreender. Nós cumprimos com nossa parte.
As duas armas que estavam com
o guerreiro se desmaterializaram, e por fim, Sonnen caminhou em direção de uma
simples katana que estava caída no chão. Segurou-a com as duas mãos, e indicou
que faria a última batalha daquela maneira, com uma simples arma, colocando em
evidência toda sua técnica e velocidade naquele estilo.
— Somos Pokémons, Aerus
Draconeon. Nós obedecemos, nós lutamos, nós vencemos. Você pode dizer o que
quiser sobre nossa relação com os humanos, mas lutamos pelo sonho dos outros.
Você se arrepende?
— De maneira alguma — o
Garchomp estufou o peito. Ativou suas lâminas.
— Então não venha me dar
sermão sobre o que devo fazer. Minha mente já está aturdida demais para que eu
continue de pé e lhe diga palavras que façam algum sentido. Apenas permita que
eu dê o meu melhor e lhe prove o motivo de eu estar aqui.
Sonnen brandiu sua espada e
avançou, mas a lâmina foi rebatida com tanta força que partiu-se ao meio e
disparou longe, acertando um dos pilares. Ele olhou para trás e viu sua lâmina
quebrada, — e com ela, um pedaço de sua história, — experimentou
uma segunda katana que foi cortada ao meio como se fosse feita de madeira. Ele
era uma nação que caminhava em direção da guerra com todos os seus soldados,
mas sem a esperança da vitória.
Aerus não dizia sequer uma
palavra, seus olhos não tinham expressão, e pela primeira vez Watt pôde vê-lo
em seu estado de frenesi. Agradeceu por não estar em seu caminho, mas não
conseguia concentrar-se na batalha com o corpo caído no chão.
— E-Eu ainda não acredito... —
Foi tudo que Watt conseguiu dizer ao ver aquela cena. Ninguém imaginava que o
fim seria daquela maneira.
Sonnen foi desarmado mais uma
vez, um feito que não ocorrera desde que começara a treinar nas terras
distantes para tornar-se o melhor guerreiro do mundo. Três de suas espadas
haviam sido derrotadas, ainda tinha muitas a usar, mas a pergunta que
continuava a matutar em sua mente era:
Por que? — ele pensou. Por
que sempre aparecem pessoas mais fortes do que nós para acabarem com tudo? Nós
nos julgávamos como os melhores... Será que é impossível ser o melhor em algo, ou
ainda preciso treinar muito mais?
Com um movimento rápido de sua
lâmina, o Psycho Cut se fez no ar, mas nada atingiu além de
poeira e pilares destroçados. Recebeu um soco na nuca, revidou com uma
velocidade impressionante, mas só viu poeira novamente. Aerus movimentava-se
agora fazendo com que Sonnen parecesse um homem preso à correntes de chumbo.
Será que nunca é o bastante?
Não tinha mais tempo de
brincar, nem se lembrava do que estava fazendo ali. Sentiu o peitoral sangrar,
assim como seu braço direito e suas pernas que já pediam para não
movimentar-se. Olhou para um dos lados, e a viu caída — imóvel.
Encontrou nos olhos fechados da irmã a sina que já o aguardava com as mãos
entrelaçadas e um sorriso no rosto, como se insinuasse: Eu estava te esperando.
— Acabou, Sonnen — disse
o dragão. — Você foi derrotado.
Sua última katana deslizou de
sua mão e caiu, desfazendo-se no ar. O corpo cambaleou e tentou manter-se
firme, mas já não conseguia. Não era como aguentar os treinos de resistência
debaixo de uma cachoeira, dessa vez, ele não queria mais levantar. Não encontrava
mais a força que antes existia para seguir em frente.
— Sophie... Irmã... — Sonnen
sussurrava com a voz baixa na tentativa de segurá-la, mas sem sucesso. Suas
mãos tremiam. Só queria poder segurá-la. — Irmã... Irmã...
Maninha...
Quem seria o culpado por
aquilo? Seu treinador? Seus adversários? A guerra? Ele próprio? Por segundos
que mais pareciam anos, Sonnen lutou contra seus próprios pensamentos que o
dominavam e torturavam seu coração. Talvez no fim das contas era ele quem não
soube lidar com suas obrigações, que permitiu que Sophie o deixasse e se
distanciasse aos pouquinhos. Ah, era tudo culpa da vida! Como pôde deixar que
ela levasse sua irmã para onde não pudesse alcançá-la?
Por um momento, pensou se era
ele quem não tinha admitido crescer, assim como não conseguia simplesmente
aceitar a morte, agora que a via tão de perto. Seus olhos começaram a
escurecer. Sonnen sabia que logo estaria com ela.
— Vocês não precisam ver isso
— disse Al Capone, abraçando Lyndis com mais força contra seu peito.
Naquela casa, não houve
vitória. Também não houve comemoração, porque não haveria nenhuma garçonete
sorridente para recebê-los no bar quando saíssem vitoriosos. Não haveria
nenhuma enfermeira para lhes dar conforto quando as cicatrizes da guerra
apertassem seu peito, e nem mesmo uma boa companhia para compartilhar a cama
quente quando o sono não chegasse. Olhou em direção de General que
devolveu-lhe um cumprimento, mas nada disse. Apenas indicou que deveriam
continuar. Os derrotados deveriam ficar para trás.
O jogo tinha
acabado para alguns, mas, por um momento, Aerus pensou se não teria sido melhor
nem começá-lo.