Ele sabia que o mundo que via já não era mais o mesmo. Ao menos, em sua concepção. A essência dele mudara, era como o despertar de um novo tempo que traria uma certa tranquilidade para aqueles a sua volta, como se um oponente de longa data tivesse finalmente sido destruído.
Assim que Aerus despertou sentiu em seu peito uma dor tão grande que mal pôde levantar-se de imediato. Gritou alto e caiu na maca novamente, como se recebesse o sopro de vida de uma divindade. Continuou gemendo numa raiva ensurdecedora por alguns minutos, queria levantar-se e sair dali, mas era impossibilitado por seu próprio corpo que pedia um repouso merecido. Lembrava-se de pouco do que acontecera, sabia que fora derrotado por Ereon, apenas imaginando a sorte que tinha pelo fato de ainda estar respirando. Por fim, calou-se e caiu num poço profundo de silêncio pelo menos até que alguém chegasse.
Seus gritos de dor chamaram a atenção de Watt que estava ali perto aguardando sua recuperação. O pequeno esquilo estava muito preocupado com seu bem estar, e temeu a possibilidade de ter perdido o melhor amigo. Ao vê-lo deitado na maca correu para abraçá-lo de forma afável e acolhedora.
— Aerus, Aerus!! Nii-san! — disse o pequeno Pachirisu com a voz entristecida. — Mal posso acreditar que você está vivo, é um grande alívio.
— Diga aí, Bola de Pelos... — respondeu o rapaz num aceno gentil. — Sabe me dizer o que aconteceu? Onde estão os outros? Onde está Ereon?
— Eles estiveram aqui, e com ajuda de Renée Whitecloud fizeram os reparos possíveis nos membros mais afetados. Por sorte todos nós nos safamos dessa, mas foi uma batalha violenta e se eles não tivessem misericórdia poderiam ter acabado com todos nós — explicou Watt, cuidadosamente. — O senhor Ereon é um homem honroso. Ele lembra muito você, de onde o conhece?
— Ele é tipo... Tipo, meu pai de criação, sabe? Ou pelo menos é o mais perto que cheguei de ter um. — respondeu Aerus, com uma das mãos na cabeça em uma região que lhe doía. Watt sorriu em resposta.
— Sim, apenas um homem como ele seria capaz de dar uma lição em todos nós. Agradeça principalmente a recuperação de seu Mestre, o Luke que conhecemos está de volta.
Aerus respondeu com um suspiro de alívio, pois aquilo era o que mais o preocupava. Perguntava-se o que perdera naquele tempo em que esteve inconsciente. Parecia ter passado dias naquele estado, mas fazia pouco menos de algumas horas e alguns de seus companheiros já haviam despertado, embora nem todos estivessem em estado saudável de saúde, e isso o preocupava.
— Onde estão os outros, Watt? Eu preciso vê-los, eles precisam de minha ajuda...
— Nii-san, você tem que descansar, não pode sair por aí mancando, os outros também precisam recuperar-se! Nesse estado não há nada que você possa fazer!
— Eu quero prestar-lhes o devido apoio... Quero agradecê-los por essa batalha, dizer que me orgulho de cada um, na vitória e na derrota... Eles também aguentam tomar uma pancada, nada que um pouco de ânimo não resolva, certo?
— Senhor, mas... O Coffey... A Wiki... O Mikau...
Aerus virou-se bruscamente para encarar seu amigo. De repente sua voz pareceu mais insegura do que de costume.
— O que tem eles? — perguntou Aerus. — Watt, o que aconteceu com eles?!
O pequeno abaixou as orelhas encabulado, como se tentasse esconder alguma coisa. Aerus agarrou duas muletas, levantou-se de sua maca, e foi mancando até as outras salas da Casa de Cura. Todos os membros da guilda estavam ali, reunidos aos montes para ajudar os feridos daquela grande batalha. Aerus mal reconheceu o lugar que costumava ser tão pouco frequentado agora cheio e coberto de uma tristeza visível. Glaciallis chorava em um canto sendo consolada por Eva e Chaud, Jade e Yoshiki verificavam o estado do gigante Coffey e Sophie tinha sérios problemas com o General. A respiração de Aerus ficou pesada, ele não imaginou que seus amigos estariam em um estado tão lastimável.
— P-Pessoal... — foram as únicas palavras que saíram naquele instante.
Eles haviam sofrido uma derrota, sim, mas aquilo fora uma injeção de desânimo em todos os membros. Era como se toda a esperança e os sorrisos tivessem desaparecido. Al Capone permanecia em silêncio num canto, Lyndis corria para todos os lados com remédios e Marco segurava o rosto de Wiki com o rosto úmido e choroso. Onde estava aquela felicidade que antes predominava no coração de todos os seus amigos? Onde estava o sorriso após uma derrota, e a determinação em levantar-se e tentar mais uma vez?
A primeira sala que Aerus seguiu era a de Coffey. O gigante estava deitado em sua maca que envergava de uma ponta a outra, virado para a parede. O homem tinha a cabeça baixa e lágrimas rolavam em seus olhos amendoados, parecia sentir muita dor com aquela ferida em seu peito, e especialmente, a no braço.
— Ei, grandão. Como está se sentindo? — perguntou Aerus, colocando de lado suas muletas e tocando no ombro do gigante. Coffey fungou e limpou o nariz umedecido ao levantar-se.
— Nada bem, chefe. Nada bem. — ele dizia.
Aerus olhou para o lado e surpreendeu se ao ver que algo estava muito errado com o braço direito do homem. Não havia um braço, e sim, um pano que mal cobria um equipamento mecânico que se assemelhava ao braço de Vista. O dragão quase sentiu um enjoo ao ver aquilo, e Chaud, que estava logo ao lado, comentou:
— Amputamos o braço direito do Grande. Eu e o Vista decidimos fazer uma parceria para construir uma prótese mecânica, com a resistência da Velha Geração e a eficiência da Nova. Em breve ele será um novo guerreiro, Aerus.
O líder olhou atentamente para aqueles olhos dispersos de Coffey. Eles exalavam aquela estranha aura pacífica, e por um momento Aerus sentiu como se fosse o culpado pelo companheiro ter pedido o braço. Sua respiração ficou pesada, pois também não estava completamente recuperado. Watt deu-lhe apoio. Coffey levantou sua mão que sobrara e tocou no ombro de Aerus de forma acolhedora. Foi como se pudesse ler seus pensamentos.
— Eu tô bem, chefe. Não foi culpa sua. Eu tô bem.
— Não cara, você não está... Cara... Olha... Olha seu braço...
Coffey tocou na região de seu coração, e depois revelou um sorriso brilhante em seu rosto obscuro e ao mesmo tempo tão sereno.
— Foi escolha minha, chefe. É a vontade da gente. Escolhas pra uma trilha melhor no futuro. Nem sempre o caminho aberto é bom, às vezes o menor e mais difícil nos leva pra algo melhor.
Aerus acenou com a cabeça e desejou mentalmente desculpas para aquele anjo aprisionado no corpo de um humano. Desejou de todo o coração que Coffey se recuperasse, e sabia que no futuro o Grande Homem ainda teria muitos ensinamentos a lhe dar.
O líder continuou seguindo com apoio de Watt, e parou ao lado da maca do General. O militar era um dos poucos que ainda não havia despertado, e estava num estado muito pior do que antes. Não apenas pela batalha, mas pelo veneno em seu corpo. Aquilo o consumia cada vez mais, e Glaciallis lamentava a opção de perdê-lo. Sophie agora preocupava-se exclusivamente com sua saúde. Fechou os olhos torcendo para que o antídoto desse certo, mas nada funcionava. A curandeira virou-se para Aerus e manteve-se séria ao dizer:
— Ele não está bem, senhor.
— Sophie, não há nada que se possa fazer? — perguntou Eva.
— Eu costumava ser uma das melhores enfermeiras do local onde trabalhei, e nem mesmo meus poderes podem retirar esse veneno. Ele foi aplicado por uma criatura maligna, e só será retirado quando ela exterminada desse mundo. — explicou Sophie.
— Mas isso é impossível, aquele monstro foi morto, Atomico está morto! — respondeu Eva num surto, seguido de uma voz a lamentar bem baixo ao seu lado.
— Não... Não.
O militar abriu seus olhos, mas não se deu ao trabalho de levantar. Não tinha controle sobre seu corpo, mas tinha forças para ouvir e entender os outros ao seu redor.
— Ele não está morto, — bradou o militar — ele fugiu. Não faço ideia de onde esse desgraçado esteja agora, mas irei caçá-lo até o fim para que sugue essa doença de meu corpo. É uma técnica antiga há muito esquecida pelos feiticeiros, e até mesmo os mortos podem ser afetados.
— O que quer dizer com isso? — perguntou Aerus.
— Isso quer dizer que eu posso morrer novamente.
Glaciallis lentamente encostou o rosto no peito de General e voltou a chorar. O homem fechou os olhos desejando abraçá-la, mas não tinha forças para isso. Chaud sentiu-se incomodado com aquela notícia. Yoshiki era perito em envenenamento e muitas vezes lidara com dardos envenenados. Ao examinar bem o veneno colhido voltou-se para Sophie e não pareceu ter uma notícia muito boa.
— Os níveis de envenenamento se dividem em níveis de força e potência. Isso não é nada comparado ao veneno normal, e conforme o tempo vai passando ele ganha força, piorando o estado de saúde da vítima. — explicou Yoshiki.
Aerus olhou para a curandeira e perguntou de maneira discreta:
— Quanto tempo ele tem?
Sophie soltou um suspiro sem esperanças e teve de lhe contar.
— Eu dou um ano.
Aerus mordeu os lábios extremamente incomodado com aquilo, pediu para continuar caminhando e verificando os feridos visto que mais nada poderia fazer. Acreditava no estado de saúde do militar, afinal, quem seria capaz de enfrentar o General Castelo Branco? Quem poderia derrotar aquele que já estava morto? Pouco a pouco seus temores começavam a tornar-se verdadeiros, e ele percebia que suas mais altas muralhas também tinham suas fraquezas.
Acabou trombando-se com Vista que caminhava com pés firmes e uma postura que demonstrava não estar muito disposto a conversar com ninguém. O dragão caiu no chão, recebendo apoio de Watt que olhou feio em direção do Cavaleiro Negro que não fizera nem questão de virar-se. Aerus chamou-o e perguntou o que acontecia.
— Vai com calma, matador. Você também foi derrubado em batalha, o que aconteceu contigo?
Vista virou-se e revelou sua coroa de ferro entortada com um corte profundo de uma ponta a outra, os dois braços mecânicos estavam quase que completamente destruídos. Sua capa estava rasgada, o peito estava aberto revelando faíscas e fios soltos para todos os lados. Aerus assustou-se com aquilo, mas o espectro manteve-se sério e fez um cumprimento rápido.
— I'm fine, my lord. Há certas coisas que requerem minha atenção agora. Certas coisas que não podem esperar um segundo, ou pode ser tarde demais.
— Wiki... — sussurrou Watt para si mesmo.
Aerus fechou os olhos desejando que aquela tortura terminasse. Ao ver Wiki deitada na cama sentiu vontade de chorar. O fluxo de energia no peito da moça estava completamente destruído e queimado, parecia ter pegado fogo com as faíscas soltas e cravado um machucado que lhe doeria muito se não tivesse desacordada. Os olhos de vidro da moça estavam trincados e em seu rosto ela mantinha uma expressão estática. Marco segurava uma das mãos da mulher enquanto Vista trazia equipamentos pesados para um reparo.
— Vamos lá, Wiki... Por favor, por favor... Não morra — dizia Marco.
— Morrer? — perguntou Aerus. — Qual é, estamos falando da Wiki. Nem um exército inteiro conseguiria derrubar essa gata, você não pode estar falando sério.
Aerus desviou o olhar para o garoto, e depois encarou Vista. Pela primeira vez o Cavaleiro manteve-se em silêncio, como se não soubesse ao certo o que aconteceria naquele instante. Há cinco horas ele tentava fazê-la voltar a vida, há cinco horas o engenheiro tentava de tudo para trazer-lhe de volta para si, mas não havia resposta.
— Stand away. Isso vai reanimá-la. — pediu o Metang.
Os braços mecânicos do espectro se transformaram em cabos de energia, e no momento em que tocaram o corpo da garota a mesma tomou um choque que fez sua energia voltar, mas não o suficiente para reatar o fluxo de energia que encontrava-se completamente destruído. Ele tentou novamente, mas não funcionava. Vista largou os equipamentos no chão, e era possível ouvir sua respiração ficar pesada. Pela primeira vez aquele guerreiro egoísta e egocêntrico tentava pensar em outra pessoa além dele mesmo.
— No. No. No. No. No. No. — repetia Vista incansavelmente, dando carga aos choques que faziam o coração da moça pulsar, mas sem respostas.
Marco ajoelhou-se ao lado de Wiki e começou a sentir as lágrimas escorrerem pelo rosto. Ela estava ali, a moça que outrora sempre o animara dizendo que tudo terminaria bem. Aerus passou a mão pelo rosto contendo o suor, mas Vista era inteligente demais para deixar-se ser derrotado pela tecnologia humana. Quebrou os dois aparelhos com seu braço num sinal de ira, formando na sequência uma garra que se assemelhava a uma pinça. O ciborgue olhou para Aerus e soltou um suspiro.
— Tenho de dizer isso, e preciso da confirmação de vocês para que não me condenem por ter feito meu melhor — explicou Vista. — Eu irei arrancar a destruir o fluxo de energia atual, construindo um novo na sequência. Porém, ela pode perder seu banco de dados para sempre, e consequentemente, sua memória.
Marco ergueu-se no mesmo instante.
— Não, não!! Deve haver outro meio, ela não pode perder a memória!!
— O golpe foi como um vírus injetado no corpo dela, ele está se propaganda e corrompendo os arquivos. Ou retiramos esse fluxo de energia agora, ou a veremos morrer em nossa frente. That's your choice.
— Não, Aerus! Não deixe que ele faça isso com a Wiki, não deixe que ele faça isso com nossa amiga!! — rogou o jovem.
— Ele também é nosso amigo, Marco. — repetiu o dragão. — E amigos confiam um nos outros.
— So be it.
Vista enfiou uma de suas enormes garras no peito da garota e pareceu arrancar o fluxo de energia rompendo todos os fios que soltavam faíscas para todos os lados. O corpo da garota envergou-se num espasmo, mas logo caiu novamente sem dar sinais de melhora. Marco levou a mão até a boca em sinal de indignação, e nas garras de Vista o ciborgue abria um depósito em seu peito e ligava novos fios numa velocidade impressionante. Ele retirou um pequeno aparelho provisório e depositou-o no peito de Wiki em menos de trinta segundos. Ao prensá-lo o cavaleiro sentiu que o coração voltava a pulsar em seu corpo, trazendo-lhe à vida novamente.
Marco soltou um suspiro e agradeceu Vista mentalmente por tê-la salvado. O espectro manteve-se quieto, ainda temendo o pior. A princípio a moça olhou para todos com olhos robóticos e automáticos, como se fosse ligada pela primeira vez, mas logo sua voz soou melancólica e entristecida.
— Mecha-boy, me ajude. Está doendo muito...
Aerus acalmou-se ao saber que a garota estava bem e a salva. O pior havia passado. O cavaleiro negro teria tempo para construir um novo fluxo de energia até que a garota conseguisse recuperar-se. Um desejava abraçar o outro naquela situação, mas ambos estavam impossibilitados demais para qualquer ato. Vista largou as ferramentas e segurou a moça em seu colo. O olhar dela era frio e esperançoso, o vidro piscava num brilho fraco amarelado, faiscando, usando suas energias reservas para manter-se de pé.
— Meu olho... Meu olho dói muito.
— I know. I know that hurts — disse o ciborgue. — Eu irei certificar-me de que você esteja renovada em breve. Não vou permitir que isso aconteça de novo.
— Wiki, Wiki, Wiki! — gritava Marco animado.
A moça virou-se para o lado e olhou para o jovem menino, acariciando sua cabeça de forma afável.
— Oi... meu fofo... Você ficou ao meu lado o tempo todo? Que gentil... — sussurrou ela, conforme o brilho dos olhos piscavam num tom cada vez mais fraco e ela desejava fazer muito mais do que segurar-lhe a mão. — Obrigado pela ajuda, pessoal. Sem vocês eu não sei o que teria acontecido...
Aerus fez um aceno com a cabeça para Vista que distanciou-se em direção de sua oficina para começar a trabalhar no novo fluxo de energia antes que a reserva temporária se esgotasse. E depois, somente depois de ter certeza que Wiki estaria bem, ele começaria a pensar nele mesmo. Pela primeira vez seu egoísmo foi derrotado para salvar a mulher que amava.
Aerus agora caminhava para uma das últimas salas das Casas de Cura. Estava escura e vazia, nenhum membro caminhava por aquele local. Em um canto solitário Mikau estava encostado na parede sem camiseta e com o metade de seu corpo enfaixado. Uma de suas mãos segurava o colar ensaguentado enquanto ele sussurrava uma melodia de dor e solidão com sua voz grave e melancólica.
O dragão foi em sua direção e parou logo a sua frente. Mikau abriu os olhos para ver quem o encarava, e sorriu ao ver o amigo. Fechou os olhos e não precisou de um sinal para pedir que ele se sentasse. De fato mal conseguia mover-se, mas preferia ficar sozinho em seu canto a receber cuidados e carícias de todos os outros membros. Precisava daquele tempo a sós.
— Precisamos conversar — anunciou Aerus ao lado, cruzando os braços e puxando uma cadeira para esticar as pernas.
— Conversemos. Estou aqui para ouvir. Não tenho como fugir mesmo — brincou o atirador.
Aerus apoiou seu braço sobre os joelhos e sorriu. Há quanto tempo não tinha uma conversa daquelas com seu amigo? Talvez desde que ele enlouquecera numa busca frenética por poder? Desde então os dois tinham se distanciado mas agora estavam lado a lado como bons e velhos companheiros de batalha. Como quando eram jovens e lutavam para conquistar a atenção de Milena.
— E por falar nela, onde a Milena está?
Mikau pediu silêncio, indicando com a cabeça uma mesa onde aquela linda mulher descansava sobre uma mesa com o rosto e os braços servindo como travesseiro. Mikau soltou um suspiro, mas não largava o colar de suas mãos.
— Ela é linda — disse Mikau. — Não acredito como fui tolo a ponto de feri-la para atingir o poder.
— Sim, foi tolice, mais do que um idiota, se quer saber. Em você isso tornou-se acentuado e estendeu-se até o fim. Essa derrota serviu para que aprendêssemos mais do que apenas uma lição.
— O problema é que... Eu ainda não aprendi a lição.
Mikau rolou a cabeça um pouco para o lado, encarando os olhos do companheiro que agora o encaravam com certa relutância e dúvida. O atirador mais uma vez respirou fundo antes de falar.
— Não sofro de doenças, não sou uma criança que quer brincar de governar e acaba chorando quando é tirada do parquinho. Eu sou pretensioso, Aerus. Sinto inveja de todos, inclusive de você, e por isso sempre estou buscando ser o mais forte.
— Você quebrou duas regras do Mundo Pokémon. Matou um humano e ameaçou o pai de nosso Mestre. Como você consegue cara? Como pôde perder a cabeça nesses instantes finais? Isso seria... Rapaz, isso seria condenado à pena de morte em outras guildas, como pode dar um vacilo desses com a gente?
— Eu sou assim, Aerus. E não vou mudar tão cedo.
Mikau parou de olhar para seu amigo. Chegou a morder os lábios como se quisesse dizer algo, mas as palavras não saíam. Olhava para o teto escuro como se por algum motivo tentasse evitar as lágrimas, e sem desviar seu olhar do vazio clamou-o com determinação.
— Me expulse da guilda.
Aerus virou-se com os olhos arregalados. Chegou a rir de primeira instância, mas perdera noção de há quanto tempo não via Mikau brincar daquela maneira com alguém. O dragão permaneceu sério antes de falar:
— Me dê um bom objetivo.
O companheiro levantou-se e segurou-o pela gola da blusa.
— Me expulse dessa droga de guilda, ou eu vou matar mais alguém. Eu sou assim, Aerus. É a minha natureza, sou frio e insensato e a cada dia descubro dentro de mim uma maldade dormente que têm se revelado incontida. Deixe-me sair dessa guilda, ou vou fazer mal para as pessoas que eu amo.
— Qual é cara, preste atenção no que você está dizendo! Eu não vou expulsar o meu melhor amigo da equipe! — respondeu ele.
— E eu peço isso exatamente por nossa amizade — assentiu o atirador. — Vamos continuar nos encontrando, aparecerei por essas bandas todos os fins de semana, e não deixarei a frente de batalha de nosso Mestre. Peço apenas para que me expulse da guilda, que me proibida e cruzar essas fronteiras quando não for permitido, antes que eu possa fazer mal a alguém que gostamos.
— E isso mudaria alguma coisa? E a Milena, como acha que ela vai sentir-se à meu respeito?! Pare de agir como um babaca!
— É por ela que eu quero que faça isso.
Aerus silenciou-se ao ver a mulher mexer-se na mesa, mas por sorte parecia não ter despertado Mikau manteve-se sério, e sabia que não era pedir demais com aquele último desejo para seu velho amigo. Se alguma outra guilda soubesse do ocorrido no Distortion World ele poderia ser condenado a pena de morte, mas uma banição seria o suficiente por ter atacado um humano com intenção de matar na frente de todos.
O dragão apoiou-se do outro lado, e Mikau fez o mesmo. O atirador juntou os pés e manteve uma pose firme como um soldado bate continência. Aerus fez o mesmo gesto, mas sentiu uma intensa dor no coração mesmo que não quisesse admitir.
Era por todos os seus amigos, era pela Fire Tales.
— Mikau, o Atirador — disse o líder, erguendo o rosto num sinal de respeito, mas gaguejando ao tentar manter a linha. — Deste momento... Deste momento... D-Deste momento em diante... eu o declaro... expulso da Fire Tales. Até que recobre a consciência de seus atos, até o líder mandante o aceite... ou que a morte o leve...
Aerus descansou de sua pose, e os dois trocaram olhares por alguns segundos. Subitamente o dragão correu para abraçá-lo e ignorou todas as ataduras e machucados que os impediam. Chorava como há muito tempo não fazia, abraçando o amigo e desejando que todas as divindades do continente o acompanhassem em sua jornada em busca de redenção.
— Qual é, o que houve com aquele Gabite encrenqueiro de quando éramos crianças?
— Eu estava para perguntar o mesmo daquele Horsea mentalmente problemático que entrou aqui — respondeu Aerus, passando a mão por baixo dos óculos escuros e agradecendo que eles o protegiam daquele momento tão embaraçoso.
— Estarei de volta quando você menos perceber. Ainda nos veremos por aí durante as batalhas, e não pense que abrirei mão dos treinos ao lado de nosso Mestre. Preciso apenas manter-me afastado de tudo e todos, pelo menos até que eu coloque meus pensamentos em ordem.
— Posso no mínimo te chamar nos sábados à noite para uma uma partida de pôquer? — perguntou o dragão.
Mikau virou-se para trás e sorriu.
— Essa guilda sempre será a minha casa. A diferença é que agora vocês terão de lidar com um invasor algumas noites, e é bom ficar longe da Milena porque continuarei tomando conta dela como sempre fiz.
— Seu merda. Vai sair da guilda por que então?
Mikau olhou para a janela em busca da estrela mais brilhante que estivera observando até então. Queria ser como ela, não suportava ser apenas uma em um céu cercado por aquele brilho celestial do universo. Ele queria ser a estrela mais brilhante de todas.
— Acho que continuarei com meus treinos. Sabe, ainda não estou no nível de me tornar um deus, mas sinto que estou bem perto — disse ele com uma risada. — Fique bem, Aerus. Quando sentir-se só olhe para o leste e ouvirá o som incessante de minha melodia. Eu não abandonarei essa guilda tão cedo. Até mais, perdedor.
Mikau estava para sair do corredor por uma das portas dos fundos, vestindo um colete por cima das ferias e apenas com o necessário numa bagagem pequena. Foi até a mesa de Milena e retirou o colar deu seu pescoço, depositando-o lentamente na mão entreaberta da moça. Porém, a mesma mão recusou e empurrou o colar de volta para seu verdadeiro dono.
— Eu já disse que o dei para você, e não vou aceitá-lo de volta — disse Milena com uma voz cansada. — Foi um presente, e se um dia você perdê-lo é porque decidiu me abandonar. Enquanto essa luz brilhar em seu pescoço eu seria sua, e somente sua.
Milena não levantou-se, dispensando beijos, abraços ou carícias. Sabia que não seria a última vez que eles se encontrariam, e tão pouco levava aquilo como uma despedida. Mikau fez um aceno e pulou a janela como se nunca tivesse recebido um corte tão profundo em seu peito. Mal ele sabia que aquela cicatriz o acompanharia pelo resto da vida, mas pelo menos, aquilo seria um símbolo de orgulho. Milena esperou que o rapaz fosse embora, e somente então levantou-se para ficar ao lado de Aerus. Os dois encararam o viajante solitário partir na colina escura ao norte, e assim ela encostou sua cabeça sobre o ombro do companheiro e sussurrou:
— Lá se vai alguém que é importante para nós dois.
— ...Mas estamos falando do Mikau. O sangue dos Guerreiros Aquáticos corre em suas veias, e creio que o veremos mais cedo do que imaginamos. Eu acredito nisso. — respondeu Aerus em voz baixa.
Os dois logo decidiram sair daquele corredor sombrio e ir para o pátio da guilda. As nuvens agora nublavam a estrela de Mikau escondendo-a atrás daquela espessa cortina. O dragão foi até uma das paredes de pedra que costumava sentar-se com os amigos e deu um salto para ficar sobre ela. Segurou na mão e Milena para que a moça subisse também, e assim eles continuaram ali encarando o vazio na medida que o restante da guilda se recuperava e tentava adormecer depois de uma noite em claro.
— Eu sou um péssimo líder, Milena.
A moça virou-se para o dragão um pouco frustrada, pois detestava quando seus amigos começavam a ter aqueles recessos de negatividade e se achavam a pior pessoa do mundo. Teve vontade de dar-lhe um tapa, mas se conteve.
— O que está dizendo? Você é forte e determinado, Aerus. Guiou todos nós até aqui, e vai começar a agir como um velho aposentado e arrependido agora?
— Não me importa vitórias ou derrotas, mas... Acabo de perder meu melhor amigo. Perdi a Titânia da mesma maneira. Fui o responsável por quase deixar meus amigos morrerem, e continuo aqui, olhando para as estrelas como se nada jamais tivesse acontecido.
— E você quer o que? Carregar os problemas de todos nas costas? Gostaria de prender a Senhorita Titânia numa jaula e contê-la de seu crescimento para que ela jamais deixasse de cuidar de todos nós? Gostaria de ver o Mikau manter-se excluído de todos nós como se fosse um bandido que deve ser punido? — dizia Milena, mantendo uma posição determinada. — Aerus, tudo isso tratam-se de escolhas, para o amadurecimento e o bem de todos. Se aprendi algo com essa guilda é que se permanecermos unidos, faremos...
— Açúcar. — respondeu Aerus de maneira séria, depois não contendo uma risada com um empurrão que levara da moça.
— É disso que estou falando. De nossa própria identidade. Todos somos grandinhos o suficiente para sabermos como trilhar nossos próprios passos. Você escolheu ser um líder, escolheu ser brincalhão e fazer todos rirem de seu jeito descontraído. Essa foi a sua decisão. Não tente tomá-la dos outros, e muito menos se influenciar por suas vontades.
— A vida é feita de escolhas, não? — respondeu Aerus, esticando os braços enquanto se espreguiçava. — Bem, chega de melancolia então. Cara, essa guilda está parecendo um necrotério.
— E o que exatamente pretende fazer? — perguntou Milena, interessada.
Aerus deu um salto do muro, esticando a mão para ajudar a moça a descer.
— Ora essa, vou voltar a ser como sempre fui.
O dragão não demorou em chutar a porta frontal das Casas de Cura direcionando todos os olhares cabisbaixos e entristecidos em sua direção. Tinha um sorriso de uma ponta a outra, e sua intenção era alegrar a todos como sempre fizera.
— Manooooooo! Coffey, tu já parou pra pensar como vai ser matador ter um gigante armado com um braço de aço na equipe? Aposto que o Sly não será mais o campeão de braço de ferro no próximo concurso. Como se já não bastasse o Vista, agora temos você. Serião, tu vai virar matador.
— Verdade, chefe? Isso é bom, muito bom. — disse o grande Rhyhorn, levantando-se de sua cama e batendo em seu peito. — Eu serei forte, muito forte. Para proteger todos vocês.
— É o caminho mais difícil que optamos por trilhar, e por esse motivo estamos todos juntos, não? Para que um ajude o outro — respondeu Watt com um sorriso.
Aerus direcionou seu olhar para a cama de Castelo e fez uma careta.
— Qual é, General! Você, um homem honrado e devotado à servidão das mulheres, deitado aí nessa cama... E nem pra tirar a bunda pra dar espaço para a Glaciallis sentar?
O homem corou, parecendo inconformado com aquilo. Olhou em direção do rosto avermelhado de sua mulher, e pensou em como pudera deixá-la tão preocupada.
— P-Perdão, meu senhor... Eu devia ter pensado nisso antes. — respondeu o militar com uma risada, mexendo os músculos e demonstrando uma forte recuperação para Glaciallis que agora sentava-se ao seu lado e o abraçava com carinho.
— Wiki, você ainda é gostosa. Acha que consegue animar a galera? — gritou Aerus de longe.
— Ah, amor! Só você para dizer essas coisas — brincou ela, recebendo um olhar desaprovador de Vista e Marco. — Meu coração mal tem energia, mas a bateria nunca acaba por completo! Ei, podemos fazer uma festa de recomeço no fim de semana, o que acham? Não vamos ficar aqui sentados com essa cara de defunto o tempo todo, certo?
— Parfait! Começarei a preparar minhas melhores comidas! Panetto, mon cher, preciso dessas suas mãos delicadas na cozinha — respondeu Akebia, vendo o parceiro prontificar-se no mesmo instante.
— Vou limpar o Salão Central com o Al Capone e separar uma coletânea de músicas dançantes! Vem também, Karl, vamos colocar essa galera pra cima, já estava na hora de sepultar as coisas ruins e começar uma nova leva! — acompanhou Lyndis animada.
Os feridos logo se levantavam, e o clima sombrio de desânimo desaparecia. Aerus levou as mãos até a cintura em um sinal agradecido de que tudo voltaria a caminhar como era, mesmo que aos poucos. Sim, essa era sua decisão.
Cada um traçou seu destino e lidou com a vida da maneira que acreditava ser certo, mas ainda assim, eles tinham certeza de que seus amigos viriam a cruzar-se mais uma vez. A maré um dia retorna, e toda armadura precisa de um dono para ser vestida. Um simples ato de compaixão e felicidade, uma única injeção de ânimo para contaminar todos os outros a sua volta com a esperança de que no fim da noite o universo traria uma manhã bem clara na sequência.